Mariângela Gama de Magalhães Gomes
André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Ra
A escalada da violência recolocou na agenda do País o recorrente tema das reformas estruturais. Em nome do combate ao crime organizado, que tem recorrido a métodos cada vez mais ousados de afronta institucional, pedem-se medidas de exceção. Em nome do combate à criminalidade de massa, pedem-se leis penais mais duras. No primeiro caso, todavia, esquece-se de que a relativização da legalidade é o primeiro passo de um processo que converte vingança em fator de intolerância, levando à corrosão moral do poder público e jogando no lixo conquistas democráticas. No segundo caso, esquece-se de que mudanças circunscritas apenas ao plano legal não dão conta de problemas de deterioração do tecido social decorrentes de séculos de exclusão.
O que se tem em ambos casos é o risco de um perverso paradoxo: quanto mais se reivindica repressão em nome da ordem, por meio de uma mídia que confunde informação com cultura do espetáculo e clamor do olho por olho, mais se retrocede do estado civil ao estado da natureza. Quanto mais se aceita a supressão do respeito à lei em nome do restabelecimento da segurança, mais se recorre à truculência e se dilui a idéia de cidadania — em suma, mais a sociedade se sujeita a combater o crime organizado e a criminalidade de massa por intermédio de métodos criminosos.
A ressurreição do fascismo, pela manipulação de uma opinião pública assustada com a incapacidade do Estado de manter ordem, é uma conseqüência preocupante desse paradoxo no plano político. As diferentes formas de opressão, voltando-se justamente contra os que vêem nas medidas de exceção uma resposta à banalização do mal, configuram outra perigosa conseqüência no cotidiano da sociedade.
É preciso, portanto, afastar o risco da tentação totalitária. Não se nega a necessidade de reformas profundas na legislação penal e nas instituições judiciais. Mas, pelo que tem sido revelado pelas últimas pesquisas sobre a opinião do eleitorado com relação aos temas sobre segurança, todo cuidado é necessário. Levantamento do Datafolha mostrou que, do total de 6.969 entrevistados em todo o País, 51% querem a pena de morte e 84% defendem a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Tão ou mais grave foi a constatação de que os jovens de hoje tendem a assumir posições mais conservadoras do que a de seus pais. E quanto menor é o nível de escolaridade dos depoentes, maior é a defesa do endurecimento penal, a simpatia pela política de encarceramento em massa e a indiferença com relação ao extermínio de jovens não-brancos, sem escolaridade, economicamente excluídos e socialmente rejeitados — o perfil predominante nas taxas de homicídio do Censo de Vitimologia do IBGE.
O que muitas dessas pessoas não percebem, por desinformação, é que o aumento do rigor punitivo voltar-se-á contra elas próprias. Iludidas pelos discursos justiceiros de aproveitadores de ocasião, o que não compreendem é que, por sua cor, faixa etária, baixa qualificação e exclusão, elas se enquadram nos protótipos de delinqüência definidos por órgãos policiais e esquadrões da morte. Nesse sentido, a sucessão de massacres de adolescentes e jovens pobres nas áreas menos favorecidas das regiões metropolitanas, evidenciando o que ocorre quando a ordem é posta à frente do direito, não é apenas trágica. Também é emblemática, sinalizando o niilismo moral com relação ao que compromete a condição da dignidade humana.
Graças à resistência cívica, o País desde 1988 dispõe de um regime democrático e uma Constituição promulgada. Mas os ganhos registrados no campo da política não foram acompanhados de conquistas democráticas nos planos da inclusão econômica e integração social. O acesso a uma educação de qualidade e a uma mídia responsável e pluralista são desafios até hoje não vencidos, o que se traduz na desconexão entre hábitos e costumes da população e cultura política. Entre direito à livre expressão e capacidade de discernimento. Por desinformação, a sociedade jamais pode de ir além de manifestar a concordância ou a discordância para as coisas como lhes são apresentadas.
Portanto, as reformas têm de ser encaminhadas com cuidado. É preciso evitar que a desordem paute a definição da ordem e que o combate à violência sirva de pretexto para se por o arbítrio à frente do direito. Em ocasiões anteriores, a sociedade se revelou capaz de manter o delicado equilíbrio entre os impulsos de vingança e o respeito aos procedimentos legais do Estado de Direito. Mas os intolerantes jamais deixaram de aguardar novas oportunidades para ladainhas fascistas.
O IBCCRIM reconhece a importância das reformas. Mas denuncia o perigo totalitário das medidas que poderão ser apresentadas por quem só sabe ver na violência a única forma de resposta à explosão da violência. Nada justifica, em nome da segurança, o menosprezo pela pessoa e o desprezo aos direitos. O combate à criminalidade não pode ter como preço a chacina das instituições.
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