INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 166 - Setembro / 2006





 

Coordenador chefe:

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Ra

Conselho Editorial

Editorial

A inutilidade do protesto por novo júri

René Ariel Dotti

Professor titular de Direito Penal da Univ. Fed. do Paraná e vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal

1. Em notável síntese, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) definiu: “A lei é a expressão da vontade geral” (art. 6º). E a Constituição francesa de 1793 ampliou o conceito para declarar: “A lei é a expressão livre e solene da vontade geral; é a mesma para todos, quer proteja quer castigue; não pode ordenar senão o que for justo e útil para a sociedade; e só pode proibir o que lhe for prejudicial” (art. 4º).

2. Estas observações vêm a propósito do recente julgamento pelo Tribunal do Júri paulista dos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos de Paula e Silva que, juntamente com Suzane Louise von Richtho­fen, praticaram homicídio triplamente qualificado (CP, art. 121, § 2º, I, III e IV) contra os pais desta, Manfred e Marisia von Richthofen. A acusação ainda atribuiu aos réus o crime de fraude processual (CP, art. 347, parágrafo único). Em relação a Cristian houve também a imputação de furto (CP, art. 155, caput). O concurso de crimes foi de natureza material (CP, art. 69).

3. O processo teve ampla repercussão nacional desde a comprovação da autoria dos delitos e suas deploráveis circunstâncias, cuja reprovabilidade foi ampliada em face do relacionamento entre acusados e vítimas e a inovação artificiosa de lugar, pessoa e coisa com o propósito de induzir em erro a perícia com a encenação de que teria ocorrido latrocínio.

O interesse público em acompanhar os debates e a decisão do tribunal popular foi intenso. A convicção generalizada acerca da culpabilidade dos réus levou uma infinidade de cidadãos a opinar sobre a quantidade das penas de prisão que deveriam ser aplicadas. A imprensa noticiou que o promotor de Justiça iria pleitear, para cada réu, o total de 50 (cinqüenta) anos. Também o interesse privado na punição ficou caracterizado pela assistência do Ministério Público, representada pelo criminalista Alberto Zacharias Toron.

4. O Júri admitiu a ocorrência dos homicídios qualificados, a fraude processual e o furto. Daniel foi condenado a 39 anos e 6 meses de reclusão; Cristian recebeu a pena de 38 anos e 6 meses e Suzane 39 anos e 6 meses.

Na individualização das penas para os crimes de morte, o magistrado aplicou a Daniel e Suzane 19 anos e 6 meses enquanto Cristian foi apenado com a reclusão de 18 anos e 6 meses. Tais penas foram somadas pelo número de vítimas e os demais delitos.

5. A previsão legal de 12 (doze) a 30 (trinta) anos para cada homicídio qualificado certamente implicaria na fixação superior a 20 (vinte) anos pela ocorrência das qualificativas de intensa reprovabilidade: motivo torpe, recurso que impossibilitou a defesa das vítimas e meio cruel. Mas o obstáculo para a imposição da pena justa foi a regra do art. 607 do Código de Processo Penal que prevê a realização de um novo — e automático — julgamento quando a sentença for de reclusão por tempo igual ou superior a 20 (vinte) anos.

6. O critério pragmático do juiz e que constitui rotina em casos idênticos — como o do jornalista Pimenta Neves, condenado a 19 anos, 2 meses e 12 dias — jamais é compreendido pela sociedade. Principalmente quando órgãos destacados da mídia nacional espalharam a equivocada e sensacionalista informação de que os réus poderiam obter a liberdade antes de cumpridos 8 (oito) anos de prisão, diante da revogação da norma que vedava a progressão do regime de execução da pena em crime hediondo. É elementar que a repulsa popular contra os autores dos delitos tão graves foi um combustível ideal para a fogueira da descrença na justiça criminal. Os meios de comunicação omitem que após o cumprimento de uma parte da pena em regime fechado o condenado permanece preso em estabelecimento de regime semi-aberto. E que a transferência não é automática; depende do bom comportamento carcerário.

7. Em 1992, o Ministério da Justiça e a Escola Nacional da Magistratura instituí­ram comissões de juristas para propor a simplificação dos Códigos de Processo Civil e Penal.(1) Em relação ao processo penal, o presidente das comissões, ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, criou um grupo sob a coordenação do professor Luiz Vicente Cernicchiaro. Como um de seus membros, ao lado de ilustres colegas,(2) tive a honrosa atribuição de elaborar um anteprojeto de reforma dos procedimentos do Tribunal do Júri. E, em separado, apresentei a proposta de supressão do recurso de protesto por novo júri (CPP, arts. 607 e 608). A matéria foi objeto do Projeto de Lei nº 4.900, de 1995, que após ter recebido parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, foi retirado pelo ministro da Justiça, Nelson Jobim.(3) No entanto, em janeiro de 2000, o seu sucessor, ministro José Carlos Dias, formulou convite ao Instituto Brasileiro de Direito Processual para prosseguir nos trabalhos. E, não obstante a renúncia ao cargo do ilustre criminalista, os esforços prosseguiram sob a liderança do ministro José Gregori que encaminhou ao Congresso Nacional 17 projetos de reforma. O disegno di legge relativo ao Tribunal do Júri tomou o número 4.203/2001 e foi objeto de acuradas observações do professor Gustavo Henrique Badaró.(4)

8. Há vários projetos de lei em andamento visando a revogação dos arts. 607 e 608 do CPP. O mais recente, de autoria do deputado Elimar Máximo Damasceno (nº 5.815, de 2005), foi apensado ao de número 2.701/2003, por tratar da mesma matéria.

Antonio Carlos da Ponte sustenta, à base de uma visão histórica e da realidade, que a manutenção desse recurso “afronta a mais comezinha noção de interesse público” além de criar desigualdades entre situações que deveriam ter o mesmo tratamento, como as condenações por latrocínio ou extorsão mediante seqüestro com o resultado morte. E aplaude a orientação do projeto em abolir o vetusto protesto por novo julgamento.(5)

Historicamente, o protesto se impunha em face do Código Criminal do Império (1830) cominar a pena de morte, justificando a revisão obrigatória do julgamento. Nos tempos modernos, a supressão já foi sustentada por Borges da Rosa e pelo mais fervoroso defensor do tribunal popular: o magistrado Magarinos Torres que, presidindo durante tantos anos o Conselho de Sentença, averbou este recurso de supérfluo e inconveniente.(6)

Quanto ao aspecto da pena justa, forçoso é reconhecer que, embora condenados por homicídio com mais de uma qualificadora, muitos réus são beneficiados com a pena de reclusão inferior a 20 (vinte) anos. Tal estratégia tem o claro objetivo de impedir o novo Júri que se realizará mediante simples petição.

Notas

(1) Portaria nº 145, do ministro da Justiça, Célio Borja.

(2) Sobre a criação e os trabalhos das Comissões originárias (redação e revisão) e da Comissão posterior, instituída pelo ministro José Carlos Dias e coordenada pela professora Ada Pellegrini Grinover, ver o meu artigo “A reforma do procedimento do Júri”, em Tribunal do Júri – Estudo Sobre a Mais Democrática Instituição Jurídica Brasileira, coordenação de Rogério Lauria Tucci, São Paulo: RT, 1999, pp. 290 e segs.

(3) Cf. a Exposição de Motivos do MJ nº 237, de 16.05.1996.

(4) Ferrari, Eduardo Reale. Código de Processo Penal – Comentários aos Projetos de Reforma Legislativa, Campinas: Millenium Editora Ltda., 2003, pp. 167 e segs.

(5) “A evolução do protesto por novo Júri no direito brasileiro”, em RT 726/483 e segs.

(6) Estes mestres do processo penal são referidos por Espínola Filho, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1955, VI/217.

René Ariel Dotti
Professor titular de Direito Penal da Univ. Fed. do Paraná e vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal



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