Mariângela Gama de Magalhães Gomes
André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Lui
Neste maio de 2006 a violência e o Estado Democrático de Direito travaram nova batalha. Em um primeiro instante aflorou a violência organizada da criminalidade contra as instituições públicas, principalmente contra os agentes policiais. O IBCCRIM, desde a manhã de 13 de maio de 2006, já se pronunciava pelo repúdio veemente aos ataques, manifestando sua solidariedade e pesar pelos policiais mortos. Após a madrugada daquele dia, o que se viu foi uma sucessão de violações e desrespeitos às instituições, às leis e, como não poderia deixar de ser, ao ser humano e à sua dignidade.
O desmoronamento da legalidade sempre se inicia de forma surda, com conivências e omissões; quase imperceptível, vai solapando a tranqüilidade firmada pelo primado legal, prossegue partindo para a intranqüilidade social, e finda com o império do mais forte. O IBCCRIM, diante de todos os fatos violentos, das ilegalidades próximas e remotas, dos ataques desumanos de parte a parte, não poderia deixar de se manifestar e reafirmar, mais uma vez, a sua prioridade fundamental que é, em momentos de crise, buscar os meios de solução dos problemas pelo uso científico e racional das Ciências Criminais, sempre com esteio nos princípios constitucionais.
Com esse intuito é necessário reafirmar, em alto e bom som, que o desespero natural da sociedade atacada não pode gerar nos agentes públicos nenhuma precipitação na busca de medidas ineficientes, apenas preocupadas em dar aparência de segurança. Todas as instâncias do Poder Público (Legislativo, Executivo e Judiciário) erraram no trato da violência criminal, desde não evitar ou, ao menos, minorar as causas geradoras do crime, até sua insistente negativa de modernizar o sistema legal do Processo e do Direito Penal, recusando-se a humanizar (sem privilégios, mas com o cumprimento da lei) e a conferir a devida atenção ao sistema prisional.
Nessa linha, o IBCCRIM expõe sua posição sobre as principais questões surgidas com os fatos atuais:
Progressão para o cumprimento de penas: se o sistema progressivo é, inegavelmente, o mais apropriado para o tratamento dos condenados presos, tanto que previsto constitucionalmente, é necessário estabelecer novos percentuais, mais individualizados, de cumprimento da pena para o recluso progredir no sistema, elevando-se eventualmente o requisito temporal sempre considerada a idéia da pena individualizada. Nessa nova fixação de regras para progressão deve-se ter em conta tanto as características do delito praticado (natureza do bem jurídico ofendido, forma de cometimento, efetivação de violência contra a pessoa, entre outras) quanto a fixação legal de regras disciplinares que formem um seguro sistema de análise do comportamento do preso, permitindo que só os merecedores realmente consigam atingir os vários estágios de cumprimento de pena. Nesse sentido já há na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5.075/2001[1] que reforma toda a Lei de Execução Penal, modernizando-a e tipificando como faltas graves por exemplo o porte de qualquer aparelho de comunicação (i), a subversão da ordem e disciplina do presídio (ii) e fugir ou não retornar de saída temporária (iii).
O dito “acordo” entre autoridades públicas e líderes de facções criminosas: o termo “acordo” é impróprio para retratar a relação que deve haver entre as autoridades públicas e os presos, em situação de confronto absoluto. Se há reivindicações dos presos quanto a serem tratados de forma humana nas condições e regras previstas em lei, não há que se falar em acordo, mas em dever do Estado de cumprir a lei. Além disso, se os presos, por meio de atos de violência e instalação do medo na população, querem negociar algo diverso do previsto em lei, também não há que se falar em “acordo”, mas relação de verdadeira igualdade entre autoridades públicas e criminosos, já que a uma mesa de negociação e acordo somente sentam-se iguais em direitos. Ora, o Estado jamais se iguala em direitos a criminosos.
Controle de acesso de pessoas e coisas nos presídios: o Poder Executivo (Estadual e Federal) deve cumprir o art. 3º da Lei 10.792 que, desde 2003, determina que os “estabelecimentos penitenciários disporão de aparelho detector de metais aos quais devem se submeter todos que queiram ter acesso ao referido estabelecimento, ainda que exerçam qualquer cargo ou função pública”. Dessa forma, todos devem se submeter a aparelhos capazes de não apenas detectarem metais, mas, juntamente com essa capacidade, de serem aptos a distinguir a forma e natureza dos objetos, mesmo no interior de valises ou vestimentas, assim como se faz nas esteiras de todos os aeroportos brasileiros. A disposição legal não comporta exceções: começando pelos agentes públicos que trabalham no sistema prisional (do diretor do presídio até o mais simples funcionário), passando pelos defensores públicos, policiais, juízes, promotores públicos e terminando pelos familiares dos presos e pelos prestadores de serviços.
Gravação de conversa entre o defensor e o preso: inicialmente deve-se registrar que ninguém está acima da lei e que um diploma universitário, a aprovação em um exame de classe ou em um concurso público não conferem imunidade criminal a qualquer pessoa, esteja ela em função pública ou agindo de forma particular. Compactuar ou auxiliar qualquer pessoa no cometimento de crime torna a pessoa co-autora ou partícipe da infração e, portanto, como tal deverá ser tratada. Se há suspeitas fundadas de que uma pessoa está auxiliando o criminoso, deverão os órgãos oficiais de fiscalização solicitar as medidas necessárias para a investigação e processamento da pessoa (como por exemplo interceptação de comunicações telefônicas, busca e apreensão, quebra de sigilos bancário e fiscal). Isso deverá ser feito por meio de investigação que demonstre objetivamente essa condição. O que não se pode é apriorística e abstratamente tomar todos os defensores como auxiliares da criminalidade, pois sob esse preconceito inconstitucional se esconde um inconfessado desejo de deixar os presos sem defesa e a mercê do Estado, deseja-se o fim do Direito de Defesa e a volta da pessoa à condição de vassalo e não mais de cidadão de direitos. Necessário recordar que, no Brasil, o advogado é o mais importante elo de ligação entre o preso e o sistema formal de justiça criminal. A investigação criminal deve se dirigir, com todo seu rigor, àqueles sobre os quais haja fundada suspeita de crime, desses o contato com os presos deve ser inclusive impedido. Quanto aos demais, em regra profissionais honestos, devem ser preservados inteiramente os seus direitos, sem os quais estará sendo irremediavelmente negada a ampla defesa (art. 5º, LV, CF).
Legislação criminal de emergência: devido à grande comoção e importância social dos últimos acontecimentos, acreditamos que esse momento seja o mais propício para a integração das atuações de todas as instâncias de Poder. Nessa esperança, deverá partir do Poder Legislativo a iniciativa de não ceder à errada tentação de elaborar legislação pontual de emergência com a finalidade de iludir a população com uma produção desalinhavada, inútil e ineficiente para resolver os problemas que são de todo um sistema, mais especificamente prisional. A base da discussão legislativa deveria ser o Projeto de Lei 5.075/2001 que, alterando 155 artigos e vários incisos da Lei de Execução Penal, torna, de modo sistemático, a legislação mais moderna e atual para a realidade carcerária de nosso século. Esse projeto deve ser o início de uma pauta de discussões, mas não o único. O Congresso deverá, com o apoio de todos os partidos políticos dispostos a prestar esse serviço à população brasileira, reunir suas lideranças e definir as linhas principais a nortearem uma ampla comissão de especialistas nas áreas da Segurança Pública, dos sistemas penitenciários, das Ciências Criminais, do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, de sociólogos e de especialistas em criminalidade organizada ou não, nacional e internacional, para elaborarem propostas de ampla lei, visando a solução gradual e efetiva do problema da violência em todas as suas fases. Desse modo, os líderes do Congresso poderiam discutir a partir de um conjunto harmônico abrangente e eficiente de propostas, e apoiado por todos os setores da sociedade.
Da dita “violência policial”: é inadmissível e intolerável qualquer forma de violência, máxime as originárias das autoridades públicas responsáveis pela segurança do cidadão. Contudo, nesse momento, é necessário destacar a impossibilidade de se afirmar, com o mínimo de certeza, se houve ou não violência na contenção e investigação dos acontecimentos. Deve-se esperar que a apuração das condutas policiais possam ser analisadas e julgadas uma a uma, com transparência e isenção. O que se pode, desde já, afirmar e repudiar com veemência é a conduta das autoridades responsáveis pela Segurança Pública de São Paulo que, descumprindo preceito constitucional (art. 37, caput, CF), retardaram e não divulgaram de modo completo as informações sobre as pessoas mortas e as condições em que essas mortes aconteceram. Foi essa falta de atuação republicana que, mais uma vez, propiciou a desconfiança na atuação policial.
Regime Disciplinar Máximo: desde a Lei 10.792/2003 — e, mais remotamente, desde a Resolução 26/2001 da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo — o RDD foi apresentado como a grande política pública de combate às organizações criminosas formadas desde os presídios. Os eventos, porém, mostraram amplamente a impropriedade dessa política. O grande equívoco foi o de, sob a roupagem de instrumento adicional de segurança, efetivamente estabelecer um sistema de tortura psicológica a contingentes massivos de presos que, no cotidiano de nossa experiência, acabaram sendo selecionados arbitrariamente. No Brasil, precisamos aprender a distinguir, de uma vez por todas, a autoridade, da mera brutalidade. A necessidade de regras mais graves e especiais de segurança — em si, inteiramente admissível e necessária na Administração Prisional — não tem por que implicar a submissão do condenado a um procedimento que vise subtrair sua saúde mental e emocional pelo isolamento e pelo ócio absolutos, cujo único resultado conhecido na história das prisões é o de produzir o enlouquecimento do indivíduo e, como resultado, graves conseqüências para a segurança de todos.
O papel da imprensa: em todo esse debate, é fundamental o papel da imprensa em sua atividade de informação e avaliação plural dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, porém, a imprensa deve zelar por seu compromisso com a verdade da informação, não se valendo para difusão de notícias incorretas e boatos sem qualquer base, como, infelizmente, ocorreu no recente episódio de São Paulo. O papel da imprensa certamente não é aquele de difundir o pânico social. Necessário recordar que a falsa idéia de que estamos assistindo a uma guerra — assim absurdamente denominada até por autoridades equivocadas — não serve para mais nada, senão para recrudescer a palavra seguinte, ou seja, que passamos a viver em um mundo sem direito, sem controle ou regras, em que tudo é permitido e que contra o inimigo tudo é possível, inclusive a eles igualando-nos quando, descumprindo a lei, respondemos com igual, brutal e impensada violência. A história de nosso País já nos mostrou, repetidamente, onde tais vozes pretendem afinal chegar.
Encerrado esses aspectos, cabe recordar que os acontecimentos de São Paulo não ocorreram por acaso e gratuitamente. Não são obras de homens isolados, mas de processos históricos mais amplos, complexos e importantes. Na base do que presenciamos agora está, infelizmente, o abandono quase completo de uma política penal conseqüente, capaz da percepção de que não bastam a captura e o aprisionamento do indivíduo, mas, e sobretudo, de que é preciso também pensar simultaneamente no momento em que esse indivíduo retornará à vida em liberdade. No entanto, e especialmente a partir dos anos noventa, abandonamos por completo essa política que havia sido formulada de modo inteligente entre nós. Apressadamente a substituímos por mera prática de aprisionamento de enormes contingentes da população, confinados massivamente e sem nenhum critério ou racionalidade, para muito além de qualquer capacidade do Estado brasileiro — com suas precariedades materiais e sobretudo humanas, de natureza sabidamente estrutural — para controlar essas multidões crescentes no interior de nossos presídios.
É um fenômeno trivial da política: a ausência do Estado implica o advento espontâneo de organizações informais e criminosas, com leis próprias, procedimentos, julgamentos e comandos. Isso é o que está na base de tais organizações criminosas e de seu crescimento descontrolado em nossos presídios. O acirramento de uma legislação penal puramente repressiva, somente considerando o aprisionamento de segmentos crescentes da população e nisso vendo esgotada toda a atuação do Estado no ciclo social da violência constituem, sabidamente, a matéria-prima mais propícia para nutrir tais organizações e fazê-las agigantar para ainda muito além do que vemos agora. Daí, portanto, o cuidado necessário neste momento crítico que atravessamos. Medidas vazias de endurecimento da legislação penal certamente fomentarão ainda mais esse quadro caótico que vivemos, fazendo explodir nossas populações prisionais em índices absolutamente impossíveis de qualquer controle ou reversão. É nisso que o IBCCRIM vem insistindo desde o início, já nos anos noventa, cumprindo o seu mais importante tarefa institucional e a justificativa mais expressiva de sua existência.[1] - Projeto cuja íntegra está publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 34, pp. 340 a 362.
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