INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 163 - Junho / 2006





 

Coordenador chefe:

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Lui

Conselho Editorial

Editorial

Toque de recolher

Laurindo Dias Minhoto

Professor do Departamento de Prática de Saúde Pública da USP

Se a magnitude dos eventos recentes impõe a necessidade de refletir sobre a intrincada questão do agravamento da violência na sociedade brasileira contemporânea, e que se expressa na reiterada constatação — entre sardônica e assombrada — do “a que ponto chegamos!”, e que nesta hora é sobretudo paulista, como fazê-lo em bases minimamente racionais num contexto em que o medo, o ressentimento, o maniqueísmo e a prescrição de míriades de panacéias simplificadoras parecem atestar o risco de toque de recolher de setores expressivos da inteligência nacional?

Para alguns, falta inteligência à polícia, sobra empreendedorismo aos bandidos. O negócio é endurecer sem perder a ternura, especialmente, o sagrado respeito à gramática dos direitos humanos que entre nós, como se sabe, foi sem nunca ter sido. Para outros, o problema está em que, numa sociedade marcada pelo mais desvalado macho-patriarcalismo, o negócio do crime seduz algumas de nossas crianças mais vulneráveis, que nele vêem confirmada a sua vontade de poder e uma alternativa para a construção de suas identidades, sem contar o tanto de adrenalina liberado na confraria dos bichos-soltos.

Não podemos nos esquecer também que há que desmascarar o segredo de polichinelo, ventilado por certa sociologia reducionista, de que crime é uma coisa, pobreza e miséria, outra. Quantos de nossos pobres (os melhores?) não constituem trabalhadores ordeiros que se resignam pacificamente aos efeitos deletérios da desindustrialização e da precarização generalizada das relações de trabalho? O que dizer então se levarmos em conta que o país não cresce decentemente há quase trinta anos?

E se os novos sujeitos a empoderar pela última geração do negócio da caridade partem para a livre iniciativa da pirataria, da sonegação fiscal, dos bicos e incontáveis quebra-galhos ilícitos? Pelo menos, em sua grande maioria, são todos da paz. Dessa perspectiva, o problema só pode estar na escumalha recalcitrante de predadores irrecuperáveis que anda em bandos, fala ao celular e se reproduz em cativeiros.

Em meio a tanto irracionalismo, o racional aparece freqüentemente como louvação da segregação do espaço urbano, aprofundamento da privatização do espaço público, desejável ocupação das ruas pelo exército, inevitável mortandade de civis pela polícia, “política” de transferência de presos para a Ilha Anchieta, blindagem de carro da “minoria branca”, a que aludiu o espasmo intempestivo de lucidez de certa autoridade, construção de rampas antimendigo etc.

Desorientação sociológica

Um tal amálgama de senso comum, oportunismo eleitoral e desorientação sociológica só vem reforçar a impressão de que também no campo das políticas de segurança pública a maldição lampedusiana fecha o cerco sobre nós: as coisas precisam mudar para permanecerem as mesmas. Por assim dizer, a viagem redonda do crime e da violência no país tem se alimentado sistematicamente da preca­rie­dade dos diag­nósticos e do imediatismo das pseudo-soluções a que dá lugar, produzindo paradoxos de toda a sorte, que, salvo melhor juízo, cumpriria começar a investigar.

No país da questão social como caso de polícia, setores liberais bem-pensantes apregoam tolerância zero com a criminalidade. A julgar pelos inúmeros relatos de abusos policiais em Nova Iorque, está-se a sugerir nada mais nada menos que uma das corporações policiais mais violentas do planeta deixe de ser tão leniente e, finalmente, venha a se confirmar na prática secular de descer o porrete sans phrase, de preferência, dentro da legalidade, como de costume.

Para consertar um dos piores sistemas carcerários do mundo, em que os Carandirus integram a paisagem, prescreve-se a importação do modelo norte-americano do encarceramento em massa, em que estratos populacionais inteiros têm sido aprisionados, no bojo de todo um cortejo de autênticas conquistas civilizatórias: legislação draconiana, instituição de supermax, suspensão de direitos dos presos, recrudescimento da pena de morte e reedição das famigeradas chain gangs com efeitos simbólicos arrasadores. No fundo, como apontam inúmeros analistas, Guantánamo e Abu Ghraib indicam a extensão e a intensificação de práticas punitivas autoritárias hoje bem sedimentadas no berço da democracia moderna.

E por que não partir para a privatização de um sistema de justiça criminal em que a racionalidade pública do direito jamais imperou? Mais uma vez, o horizonte de rebaixamento jurídico-penal é norte-americano, em que o choque de eficiência capitalista vem produzindo proezas como cláusulas contratuais permissivas de superpolução carcerária, postergamento da concessão de benefícios aos detentos e normalização de trabalhos forçados, para ficar apenas nas mais notórias.

Regressão penal

A questão de fundo se relaciona, a meu ver, a um duplo processo pelo qual, no momento presente, mudanças internacionais de largo alcance no campo das políticas de combate ao crime e à violência se combinam de modo complexo a ingredientes peculiares à tradição de práticas de controle no Brasil, que hoje tendem a se exponenciar com o naufrágio dos grandes projetos de integração nacional do século XX.

Para pôr as coisas em perspectiva, medidas como tolerância zero, encarceramento em massa e privatização de presídios constituem a resultante de um tremendo processo de regressão do discurso e das práticas jurídicas penais verificado no contexto dos países do centro, notadamente no anglo-saxão, com os Estados Unidos, por assim dizer, na vanguarda do atraso. Essa regressão tem a ver basicamente com a crise do Estado de Bem-Estar e o esgotamento de seu modelo de segurança pública, ao mesmo tempo que ela também reforça a manutenção e o aprofundamento de um amplo e variado repertório de práticas bárbaras de controle do crime, característico da história nacional, e que é reposto nestes tempos de reestruturação capitalista.

Em certo sentido, o que se verifica hoje no país do futuro é o paradoxo do consumo de modelos ideológicos truculentos de combate à violência cujas dimensões mais regressivas encontram-se profundamente enraizadas em nossa própria sociedade. Ou seja, em matéria penal, corremos o risco da importação de modelos de última geração que nunca deixaram de ser coisa nossa.

Por óbvio, um nó desse tamanho não se desfaz de hora para outra, nem tampouco se resolve pelo apelo reiterado a pseudodiagnósticos e soluções de fancaria. Como costuma acontecer em tais casos, eles contribuem para agravar a doença que pretendem combater.

Laurindo Dias Minhoto
Professor do Departamento de Prática de Saúde Pública da USP



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040