INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 79 - Junho / 1999





 

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Editorial

A certeza do crime antecedente como elementar do tipo nos crimes de lavagem de capitais

Fabio Roberto D'Avila

Advogado, especialista em Ciências Penais pela PUC/RS, mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS e Conselheiro do Instituto Transdisciplinar de Ciências Criminais

A recente Lei nº 9.613/98, Lei da Lavagem de Dinheiro, estabeleceu em seu art. 1º o que a doutrina denomina de tipo diferido(1), ou seja, determinada conduta punível, cuja subsunção típica depende da existência de um crime antecedente, in casu, previamente restrito àqueles elencados em seus incisos I a VII. Em outras palavras, segundo a sistemática legislativa adotada, somente haverá crime de lavagem, se os bens, direitos ou valores envolvidos forem provenientes, direta ou indiretamente, de algum dos crimes arrolados nos referidos incisos.

Por outro lado, observamos que parte da doutrina jurídico-penal vem assumindo uma curiosa postura ao comentar a relação entre estes dois preceitos: o tipo penal diferido e o tipo penal antecedente. Segundo alguns dos comentários destinados ao tema, por ser o crime de lavagem um delito autônomo, não estaria condicionado ao processamento ou julgamento do crime antecedente, como, aliás, expressamente dispõe o art. 2º, inc. II, da lei, exigindo para a subsunção típica do crime de lavagem, apenas a constatação de "indícios", "sérios indícios" da existência do crime antecedente. Tais indícios, chamamos atenção, não serviriam apenas à justa causa para o processamento, mas seriam, até mesmo, suficientes para a condenação do suposto lavadeiro.

Salvo melhor juízo, não podemos concordar com tal posicionamento. É incontestável que a técnica legislativa adotada tornou o crime antecedente elementar do tipo previsto no art. 1º da Lei de Lavagem, condicionando-o a sua verificação plena(2). Afinal, acreditando encontrar-nos em um Estado Constitucional Democrático de Direito, a condenação de um indivíduo, sem a absoluta certeza da realização de todos os elementos previstos no tipo, afrontaria o primeiro postulado do positivismo jurídico: o princípio da legalidade. Por óbvio, a incerteza quanto a ocorrência do crime antecedente, redundaria na incerteza quanto a um dos elementos objetivos do tipo em questão, impossibilitando, conseqüentemente, a sua adequação legal.

Considerarmos que meros indícios da ocorrência do crime antecedente, mesmo que atribuindo-lhes a inapreensível característica de "sérios", seriam suficientes para justificar uma condenação criminal por lavagem de dinheiro, nos remonta às origens do Direito Penal, do Direito Penal inquisitorial, despótico, autoritário, quando a mera suspeita substituía a verdade no nefasto afã punitivo, seja qual fosse o custo de tal procedimento.

Como bem leciona Luigi Ferrajoli(3), sustentarmos um ordenamento jurídico democrático e constitucional implica, obrigatoriamente, em um ordenamento jurídico essencialmente complexo, no qual as normas substanciais admissíveis já encontram-se positivadas e, por sua vez, formalmente e objetivamente condicionantes. Neste universo, a única concepção de crime admissível é a exclusivamente formal, isenta de todo moralismo ou naturalismo que pudesse, de qualquer forma, ingerir em sua perfeita e objetiva representação. Considera-se crime, por sua vez, toda ação ou omissão que atenda, no mínimo, aos elementos de  tipicidade e antijuridicidade, eis que, como sabemos, a culpabilidade, segundo parte da doutrina, é mero pressuposto da pena(4).

Assim, levando em consideração o conceito formal de crime e a sua colocação como elementar no delito de lavagem, poderíamos cogitar quais seriam as conseqüências sofridas pelo tipo de lavagem, no caso de reconhecer-se, em relação ao crime antecedente, a ocorrência de erro de tipo invencível, ausência de tipo subjetivo ou ocorrência de alguma justificante, entre outras hipóteses excludentes do crime em sua concepção formal, uma vez que meros indícios, certamente, não seriam capazes de elucidar a ocorrência de tais fatos. Ora, é evidente que o reconhecimento de uma justificante, ou a ausência de um dos elementos do tipo, acarretaria na ausência do crime antecedente e, por conseguinte, na absoluta impossibilidade de subsunção típica, pela ausência da  elementar típica "crime". No caso de lavagem de dinheiro proveniente de tráfico de entorpecentes, verbi gratia, só haveria sentido em se falar de lavagem, quando a ocorrência do crime de tráfico estivesse juridicamente certa, uma vez preexistente àquela.

Assim, já que o art. 1º da Lei nº 9.613/98 faz expressa menção a "crime" antecedente, não podemos prescindir da análise de uma possível justificante, a qual implicaria na inexistência dos dois delitos. Destarte, como avaliar objetivamente, a presença ou não de tal ocorrência, levando em consideração meros indícios? Não seria temeroso angariar-se condenações pelo crime de lavagem, na ausência do delito anterior pela operação de uma excludente da ilicitude? Indícios, como bem indica seu próprio nome, são elementos de mera probabilidade, nunca de certeza, havendo grande margem para o engano judicial, para o erro, para a injustiça, custos que, segundo Luigi Ferrajoli(5), são absolutamente injustificáveis positivamente ou, sequer, tolerados com base em teorias ou ideologias de justiça. Certamente não há outra interpretação plausível: ou admitimos a presença do crime antecedente como elementar objetiva do crime de lavagem, devendo ser concebido em sua concepção formal, mediante critérios de certeza, ou daremos margem a uma interpretação absolutamente substancialista de crime, na idéia do delito além da lei, em sua identidade ontológica de malum in se(6).

Deixemos claro, por outro lado, que a prova cabal da ocorrência do delito antecedente poderá, tranqüilamente, ser verificada no próprio processo de apuração do crime de lavagem ou, até mesmo, em processo autônomo aberto pela notícia da ocorrência do crime anterior. Meros indícios do crime anterior seriam suficientes, isto sim, para instrumentalizar o oferecimento da denúncia, uma vez que a sua prova efetiva estaria relegada à instrução(7).

Devemos, por fim, observar que o tipo previsto no art. 1º da Lei nº 9.613/98 não corresponde à melhor técnica legislativa. Em que pese uma certa discussão quanto à efetiva existência de elementos absolutamente descritivos(8), bem como a dificuldade de sua utilização na tipificação de delitos "modernos", não resta dúvida que o legislador deve tentar ater-se a estes, evitando a utilização de elementares de cunho normativo na construção típica, com vistas a uma maior objetividade e fidelidade aos princípios garantistas da legalidade, da legalidade estrita e da determinação do tipo. Como bem salientam Maurach e Zipf, "la exigencia de la óptima determinación de las normas jurídicas conminatorias emana inmediatamente del principio del Estado de derecho y tiene su más importante ámbito de aplicación en el derecho penal"(9).

Ademais, neste importante momento político em que vivemos, no qual a justificável insatisfação popular com as medidas de Estado propulsiona uma espécie de turbilhão legiferante, hipocrisia concretizada na absoluta falácia discursiva, a função garantista do Direito Penal nunca foi tão útil, como instrumento de limitação ao poder punitivo do Estado, opondo-se a este inexpugnável Direito Penal emergencial, cujos ditames vêm assolando, indiscriminadamente, séculos de evolução, em uma voracidade destrutiva surpreendente. Lembramos sempre, como bem adverte Paolo Risi, "la justicia penal, en ausencia de garantías, genera para los ciudadanos peligros talvez mayores que los suscitados por las pasiones dos culpables"(10).

Notas

(1) Ver Cervini, Raúl; Oliveira, William Terra de; Gomes, Luiz  Flávio, "Lei de Lavagem de Capitais", São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 326.

(2) Ver Jacobs, Günther, "Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoría de la Imputación", 2ª ed., Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 189.

(3) Ferrajoli, Luigi, "Derecho y Razón, Teoría del Garantismo Penal", 2ª ed., Madrid, Editorial Trotta, 1997, pp. 353/381.

(4) Neste sentido, Damásio de Jesus ("Direito Penal, Parte Geral", v. 1, 20ª ed., São Paulo, Saraiva, 1997, p. 149) e conhecida doutrina nacional. Em sentido contrário, considerando a culpabilidade como elemento constitutivo de crime, entendimento que entendemos mais acertado, Cezar Roberto Bitencourt ("Teoria Geral do Delito", São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 33); Francisco de Assis Toledo ("Princípios Básicos de Direito Penal", 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, p. 82); Reinhart Maurach e Heinz Zipf ("Derecho Penal, Parte General", v. 1, Buenos Aires, Astrea, 1994, p. 212); Enrique Bacigalupo ("Manual de Derecho Penal, Parte General", 2ª ed., Bogotá, Temis, 1994); entre outros.

(5) Ferrajoli, Luigi, op. cit., pp. 210/211.

(6) Ver Ferrajoli, Luigi, op. cit., p. 376.

(7) Este também é o entendimento adotado por Marco Antônio de Barros, em sua recente obra sobre o tema ("Lavagem de Dinheiro", São Paulo, Editora Oliveira Mendes, 1998, p. 84).

(8) Ver Maurach, Reinhart, Zipf, Heinz, op. cit., pp. 365/366.

(9) Maurach, Reinhart, Zipf, Heinz, op. cit., p. 158.

(10) Risi, Paolo, apud Ferrajoli, Luigi, op. cit., p. 604.

Fabio Roberto D'Avila

Advogado, especialista em Ciências Penais pela PUC/RS, mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS e Conselheiro do Instituto Transdisciplinar de Ciências Criminais.



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