A segurança jurídica decorre da certeza do Direito, na formulação proposta por Paulo de Barros.(1)
Essa pressupõe, não apenas a rigidez na elaboração da lei (momento estático) como a previsibilidade dos resultados de sua aplicação (momento dinâmico) e a estabilidade de seus efeitos mas, também, a observância dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos e norteadores dos princípios elementares de tal estrutura, disciplinados pelo ordenamento jurídico.
No âmbito do sistema processual penal, a garantia do devido processo legal implica a adequada utilização de seus institutos, servindo de instrumento de efetivação de direitos fundamentais, dos quais a ampla defesa é exemplo.
Um dos corolários da ampla defesa é a publicidade, que em seu âmbito instrumental garantidor da liberdade individual apresenta-se como o direito de o acusado ter pleno conhecimento da acusação.
Para ser respeitado tal limite à atuação repressiva do Estado, a fórmula inicial da acusação (denúncia) há de descrever claramente os aspectos básicos da imputação, quais sejam, a definição da autoria e da materialidade.
No aspecto subjetivo (autoria), a inicial acusatória deve indicar quem praticou o fato típico, especificando, a princípio, sua conduta.
Quanto ao âmbito objetivo (materialidade), deve a denúncia descrever o fato (conduta, resultado e relação de causalidade), com todas as suas circunstâncias (tempo, local e modo de execução).
Assim, quando da leitura da peça inicial acusatória, deve se poder abstrair quem fez o que, de que forma, quando e onde, para ser possível ao sujeito saber especificamente do que está sendo acusado, para poder elaborar sua defesa.
Em linguagem prescritiva e identificadora dos elementos intrínsecos à inicial, o art. 41, do CPP arrola a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias [...]. Denúncia que não possua tal conteúdo é inepta, por falta de requisito essencial.
Nos crimes praticados mediante concurso de pessoas ou autoria mediata (especialmente nos quais a conduta é praticada mediante atuação da pessoa jurídica), verificam-se hipóteses em que a especificação e detalhamento da conduta individual de cada co-autor ou partícipe faz-se de difícil identificação, embora seja certa sua existência.
Exemplo dessa situação ocorre na prática de roubo onde diversos agentes utilizam-se de artifícios que dificultam seu reconhecimento (como máscaras), ou se revezam nas variadas tarefas de conduta complexa, com múltiplas fases de execução.
No caso, mesmo se sabendo que o assalto foi praticado por certa quantidade de pessoas determinadas (presas em flagrante, por exemplo), se as mesmas não esclarecerem a atuação de cada indivíduo em cada uma das fases da execução, dificilmente será possível identificar individualmente as condutas, embora haja certeza de que todos participaram da conduta globalmente considerada.
O mesmo ocorre com a prática de crimes perpetrados mediante a atuação de pessoa jurídica, dos quais os contra a ordem tributária são uma modalidade.
Adotada a teoria contratual da natureza jurídica da pessoa moral, conclui-se que esta age conforme os desígnios de seus administradores.
Ocorre que os propósitos societários envolvem tomadas de decisões amplas, com comandos de atuação genéricos, transmissões de ordens implícitas e execução material fragmentada, sendo a conduta pulverizada em suas fases de execução.
Para evitar a impunidade de tais crimes pela impossibilidade de formulação de denúncia que especifique individualmente as condutas, admite-se nessa hipótese, a título de exceção, a imputação da responsabilidade pelo fato sem a identificação específica da participação de cada agente.
Porém, a descrição do fato nessas circunstâncias não pode ser por demais genérica a ponto de o acusado não poder identificar a conduta imputada.
Ocorre que o conceito de imputação genérica, ou a adjetivação de seu instrumento (denúncia), pertence à categoria designada como conceitos jurídicos vagos.
O fenômeno da vagueza decorre da própria essência da semiótica (especialmente no campo da lingüística, sob as modalidades semântica e pragmática), pois os signos (palavras) exprimem uma idéia ou um conceito, o que não é exatamente o mesmo que o próprio objeto, eis que, como instrumento do processo de comunicação, é incompleto e sujeito a deformações, o que é reconhecido por Maximiliano ao tratar do processo filológico (gramatical) de interpretação, quando assevera que a letra não traduz a idéia, na sua integridade.(2)
Termo vago é aquele impreciso quanto aos limites de seu significado ou, na conceituação de Tercio Sampaio, quando seu possível campo de referência é indefinido.(3)
Identifica-se pelo fato de possuir três âmbitos de incidência: um positivo (no qual existe consenso genérico acerca da pertinência do significado ou aplicação de um termo), outro negativo (devido a existir o consenso, porém acerca da não-aplicação) e, entre ambos, um intermediário e de conteúdo duvidoso, pela ausência de tal consenso.
Assim, se tem como certa a aplicação do adjetivo claro a uma situação específica, como a hipótese de presença ampla e direta da luz solar. Do mesmo modo, se aceita como não aplicável tal adjetivo para a situação diametralmente oposta, qual seja, a ausência de luz.
Porém, entre ambos os extremos, há uma amplitude fática, à qual a aplicação do adjetivo não é precisa, consistente na penumbra.
Nessa zona de significação, a aplicação do termo sofrerá oscilações conforme os critérios interpretativos adotados pelo sujeito. Em tal possibilidade de variações consiste a vagueza do significado do termo.
Essa vagueza é responsável por parcela de insegurança jurídica, na medida em que o contorno dos limites de incidência do termo apenas pode ser apreciado diante do fato concreto.
Nesse contexto, a carga ideológica formadora do substrato teórico do intérprete assume relevante papel, condicionador do resultado hermenêutico.
Sabendo-se que a formação científica dos intérpretes não é uniforme, a ausência de um critério indicador das interpretações redundaria na ampliação do campo da insegurança jurídica em limites inaceitáveis a um Estado de Direito pois, como esclarece Becker, uma das funções do direito positivo é precisamente conferir certeza à incerteza das relações sociais.(4)
O instrumento em estudo (denúncia) possui finalidade específica decorrente da natureza do instituto, qual seja, delimitar a acusação para possibilitar a ampla defesa.
Logo, a análise de sua adequação há de ser feita em face de tais parâmetros, ou seja, se for possível ao sujeito identificar os contornos da acusação de modo a lhe permitir elaborar defesa em face de fato determinado, não se pode considerar como genérica a imputação, apenas o sendo na inexistência de tal possibilidade.
Já tivemos inclusive a oportunidade de afirmar que o critério a ser adotado na hipótese é o que garante a ampla defesa pela possibilidade de certeza da imputação pelo acusado,(5) com a delimitação do fato e sua participação.
Porém, não resta afastada a possibilidade da utilização de recursos de presunções de autoria, como os critérios do controle volitivo da conduta, mediante os quais as pessoas que possuem o poder de administração (tomada de decisões sobre determinadas atuações da empresa) presumem-se autores intelectuais, e os funcionários que possuem atribuição de execução das tarefas no interior da empresa, que implementem efetivamente tais atuações (execução fática das condutas que implementem os resultados), presumem-se instrumentos de autoria mediata.
Como qualquer presunção, seu efeito é a inversão do ônus da prova. Dessa forma, havendo conduta perpetrada mediante atuação de pessoa jurídica, os detentores do domínio do fato são, até prova em contrário, responsáveis por sua determinação, o que se conclui por raciocínio lógico que deve estar estampado na inicial, possibilitando a defesa.
Assim, assegura-se a liberdade individual pelo respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos e respectivas garantias constitucionais, sem inviabilizar a atividade repressiva do Estado em face da prática de condutas criminosas, o que é imperativo de segurança e ordem social.
A inconsciência da existência de tal critério balizador, assim como da circunstância de que sua incidência apenas será possível em face do fato concreto e individualizado, tem provocado perplexidade aos operadores do Direito, que, freqüentemente, deparam-se com decisões judiciais aparentemente contraditórias acerca do tema, onde ora se admite e ora não, a propositura de ações penais mediante denúncias adjetivadas como genéricas.
O equívoco decorre da desconsideração das características peculiares de cada situação, que se verifica com a inadequada prática de mera comparação entre diversos resultados jurisprudenciais, muitas vezes representados apenas pelas ementas dos julgados.
Notas
(1) Carvalho, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 1993, p. 91.
(2) Maximiliano, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1991, p. 117.
(3) Ferraz Júnior, Tercio Sampaio, Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, Atlas, 1988, p. 234.
(4) Becker, Alfredo Augusto, Teoria Geral do Direito Tributário, 3ª ed., São Paulo, Lejus, 1998, p. 76.
(5) Eisele, Andreas, Crimes Contra a Ordem Tributária, São Paulo, Dialética, 1998, p. 204.
Andreas Eisele
Promotor de justiça em Santa Catarina, mestrando em Direito do Estado pela UFPR e professor de Direito Penal na FURB.
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