INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 77 - Abril / 1999





 

Coordenador chefe:

Berenice Maria Giannella

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A aplicabilidade das penas restritivas de direitos ao condenado por tráfico ilícito de entorpecentes

Raquel Freitas de Souza e Hélio Egydio de Matos Nogueira

Procuradora do Estado de São Paulo e Juiz Federal em São Paulo

Com o advento da Lei nº 9.714/98, que alterou o Código Penal, ampliando o rol de penas restritivas de direitos e a possibilidade de sua aplicação, criou-se polêmica acerca do cabimento de imposição das chamadas "penas alternativas" ao delito de tráfico ilícito de entorpecentes.

O novo art. 44 do Código Penal permite a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, se presentes os requisitos subjetivos estampados nos incs. II e III, se for aplicada pena corporal não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa. Por seu turno, ao delito de tráfico ilícito de drogas é cominada pena mínima de três anos de reclusão e, é ressabido, nem a violência nem a grave ameaça são elementos constitutivos do tipo correspondente; assim, de pronto, infere-se que é perfeitamente aplicável a substituição em comento. Deveras, incide aqui a antiga e conhecida regra de hermenêutica: se a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir ("Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus"), vale dizer, a norma, se presentes as condições por ela reclamadas, deve ser cumprida, sendo vedado o acréscimo de condições novas e não previstas que restrinjam a sua incidência.

Sustenta-se que as inovações trazidas pela Lei nº 9.714/98 não se aplicam aos que perpetraram delitos de tráfico de substância entorpecente, já que tais condutas estariam tipificadas em legislação especial (art. 12 da Lei nº 6.368/76), sendo certo que, também por força de lei extravagante (Lei nº 8.072/90, art. 2º, § 1º), a pena corporal imposta deveria ser cumprida integralmente em regime fechado.

A argumentação não convence.

Da exegese da Lei nº 9.714/98, no que pertine à substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, aflora a sua aplicabilidade também aos delitos definidos em legislação especial.

Com efeito, prescreve o art. 45, § 3º, do Código Penal que a "perda de bens e valores pertencentes aos condenados dar-se-á, ressalvada a legislação especial, em favor do Fundo Penitenciário Nacional, ..." (grifamos).

Ora, se a perda de bens e valores constitui-se em pena restritiva de direito (CP, art. 43, II), da norma contida no art. 45, § 3º, do Código Penal, deduz-se sua incidência inclusive para os crimes disciplinados por lei especial (v.g., Lei de Tóxicos): aplica-se tal pena expropriatória nestes casos, com a única ressalva de que os bens e valores não se reverterão ao Fundo Penitenciário Nacional, caso haja disposição específica em contrário. Observe-se que, em matéria de tráfico de entorpecentes, no que pertine à expropriação de bens e valores, existe disposição normativa (CF, art. 243, caput, e Lei nº 7.560/86, art. 4º), determinando que constituirão recursos do Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate às Drogas de Abuso (FUNCAB), enquanto as glebas de terra, nas quais se localizem culturas de plantas psicotrópicas, também serão expropriadas e reverterão para fins de reforma agrária (CF, art. 243, § 1º e Lei nº 8.257/91).

Pelo exposto, dessume-se que a "mens legis" do novo diploma é no sentido de ampliar a incidência das penas restritivas de direitos, estendendo-as à legislação especial. Tal conclusão aplica-se, com mais razão, às demais penas alternativas, pois, com relação a estas, não há ressalva alguma à sua integral aplicação.

Por outro lado, não são inconciliáveis os comandos legais emanados da novel legislação e os dispositivos da Lei nº 8.072/90.

A par da inconstitucionalidade da norma estampada no art. 2º, § 1º, da chamada Lei dos Crimes Hediondos, deve o hermeneuta procurar conciliar os textos legais, de tal sorte que seja preservada a vontade da Lei nº 9.714/98, qual seja, sua vocação de incidência universal, substituindo penas privativas de liberdade cominadas por legislação penal especial ou não.

Assim, v.g., se alguém for condenado pela prática do delito definido pelo art. 12 da Lei nº 6.368/76 e preencher os requisitos objetivos e subjetivos reclamados pelo art. 44 do Código Penal, deve obter a substituição da pena corporal por outras penas restritivas de direitos. Caso não preencha os requisitos legais e não granjeie a substituição em foco é que cumprirá sua reprimenda integralmente em regime fechado.

Nem se diga que causa espécie a imposição de pena substitutiva ao que comete o ilícito de tráfico de entorpecentes porque, caso descumprida a pena imposta e revogada a substituição, terá o condenado de cumprir pena privativa de liberdade em regime fechado: a própria sistemática da Lei nº 9.714/98 prevê hipótese semelhante.

De fato, em sua nova redação, o § 3º do art. 44 permite a substituição de pena privativa de liberdade mesmo ao condenado reincidente, desde que a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não seja específica. Pois bem, neste caso, se o condenado tiver sua pena restritiva de direitos convertida em privativa de liberdade deverá cumpri-la, em tese, em regime fechado, ex vi do art. 33 e parágrafos do Código Penal. Ora, se se admite que o reincidente, que teve revogada a pena restritiva de direitos, desconte o restante da pena corporal em regime fechado, não há motivo para estranhar-se que o mesmo ocorra com o traficante de substância entorpecente.

Sublinhe-se que não se está aqui advogando a irrestrita e automática substituição da pena privativa de liberdade aplicada aos que se envolvem com o tráfico de drogas. Evidentemente, no caso concreto é que se aferirá se o acusado subjetivamente fará jus ao benefício e se este é suficiente para a reprovação e prevenção do crime (CP, art. 44, III, e art. 59, caput): a possibilidade da substituição ora sustentada permitirá ao julgador melhor individualização da sanção penal, evitando-se longo encarceramento, com todos os seus efeitos deletérios, por exemplo, daquele que, de modo eventual, cede a outrem graciosamente pouca quantidade de entorpecente ou daquele que se entrega (até porque muitas vezes também é toxicômano) esporadicamente ao pequeno comércio de drogas.

O entendimento apriorístico de que todo e qualquer traficante, apenas por ostentar tal rótulo, não preenche as condições subjetivas para receber como sanção alguma pena restritiva de direitos não se coaduna com o princípio constitucional da individualização da pena e afasta-se da culpabilidade do fato, encampada por nosso ordenamento jurídico.

Raquel Freitas de Souza
Procuradora do Estado de São Paulo

Hélio Egydio de Matos Nogueira
Juiz federal em São Paulo