Augusto Pinochet, senador vitalício, sempre general e, na maior parte do tempo ditador, responsável por transformar campos de futebol em palcos de genocídio, sentia-se seguro a ponto de acreditar que todas as nações ditas civilizadas deveriam reverentemente curvar-se à sua passagem, jungida pelo manto intangível da imunidade advinda da sua condição de parlamentar por decreto. O Direito Penal, nos dias de hoje empregado com rara habilidade promocional, e sempre a (des)serviço dos "nadie", como lembra Galeano, é algo que jamais o alcançaria, mormente porque a limpeza ideológica por ele operada levou seu país a uma situação economicamente privilegiada, argumento válido ao menos desde o ponto de vista de seus colaboradores.
Mas a metropóle, ou por um verdadeiro espírito humanitário na proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, ou para demonstrar que a impunidade é algo admissível apenas entre os colonizados, resolveu cobrar o tributo da História. Fiquemos, por uma opção mais consentânea com o cinqüentenário da Declaração dos Direitos do Homem, com a primeira das possibilidades, e defendamos que este momento vivido é, sim, um marco positivo de processo civilizatório, aqui entendido como o faz Bobbio, ao aduzir que a noção de progresso está umbilicalmente vinculada ao respeito às garantias protetivas da dignidade humana. A comunidade internacional nos mostra, assim, que há uma função digna a ser cumprida pelo sistema repressivo.
Quando se defende um Direito Penal mínimo, coerente com os princípios do Estado Democrático e de Direito, e afirma-se que seu papel é inarredavelmente o de promover a proteção da dignidade da pessoa humana, combatendo-se a proliferação normativa alucinante (como é lamentavelmente exemplar a situação brasileira), voltada para interesses sobretudo de ordem econômica onde se protegem bens de consumo e não seres humanos, quer-se afirmar que este é o momento do sistema repressivo legitimamente atuar para, ao mesmo tempo, verificar qual é o grau de legitimidade das afirmações de governantes que se dizem preocupados com a criação de uma agenda política.
O Estado brasileiro, neste particular, é pródigo no exercício da retórica vazia, o que pode ser visto em três momentos distintos. O primeiro é o próprio Código Penal, onde, de acordo com o art. 7º, nada poderia ser feito na proteção a qualquer brasileiro que tivesse sofrido as atrocidades daquele regime ditatorial, vez que a lei chilena de anistia impediria a persecução penal de acordo com a lei brasileira, na combinação dos §§ 2º e 3º da mencionada norma. Também demonstra a falácia da política brasileira em relação à proteção da dignidade da pessoa humana a relutância na aceitação da jurisdição internacional da Corte Interamericana de Justiça que hoje, ainda a passos de cágado, é discutida no Congresso Nacional, por óbvio com interesse muito menor que as necessárias regras para adequar a economia brasileira aos ditames de mercado internacional com o fulcro de lhe dar maior "credibilidade" e, ainda, pelo pífio papel desempenhado pela diplomacia brasileira nos trabalhos de edificação da Corte Internacional de caráter permanente, criada pelo Tratado de Roma em julho deste ano e que é praticamente desconhecida da comunidade pátria, especializada ou não na matéria.
Mas a situação do ex-ditador (há dúvidas se diante da palavra ditador se pode agregar o prefixo "ex") chileno no contexto internacional não pode ser desprezada. Sua verdadeira extensão ainda está longe de ser precisada, podendo vir a constituir um brado de insurreição às atrocidades que as políticas locais, por comodismo ou fraqueza, buscam esquecer, ou transformar-se apenas num inusitado episódio, tão fugaz quanto suas conseqüências. Hoje pode-se afirmar, apenas, que dificilmente uma ditadura transita em julgado.
Fauzi Hassan Choukr
Promotor de justiça em Jundiaí (SP), mestre e doutorando em Direito Penal pela USP e diretor de Relações Internacionais do IBCCRIM.
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