INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 74 - Janeiro / 1999





 

Coordenador chefe:

Berenice Maria Giannella

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A lei, o processo e o fato - Ofensa aos inocentes

Higino Cinacchi Júnior

Juiz Federal em São Paulo

O Direito Penal tem sido alvo de infindáveis críticas que ora se voltam contra seus operadores, ora contra seus produtores, isto é, procura-se encontrar a todo momento o culpado pela impunidade, eleita como origem e fonte de quase todos os problemas sociais da atualidade. Essa culpa ou responsabilidade pela impunidade tem sido atribuída ao Poder Legislativo (produtor das leis) e ao Poder Judiciário (aplicador das leis).

Entretanto, os reclamantes esquecem que entre a hipótese legal e o processo judicial, através do qual o Estado pune, existe o fato e sua apuração, ou seja, a produção da prova.

A avassaladora e desordenada produção legislativa, que é já um mal em si mesma, contribui, em muito, para aumentar o desalento na crença do fim da impunidade, provocando em curto espaço de tempo exacerbação da decepção popular e social. É que de nada adianta existir uma lei para cada crime ou para cada tipo de delito ou infração; não é o número de leis que resolve a questão da criminalidade. Por outro lado, também não resolve a questão da impunidade criar leis cada vez mais severas, com penas cada vez maiores e impedimentos à concessão de benefícios como, por exemplo, a liberdade provisória e outros. Nada disso é a solução, embora o Congresso Nacional, sensível a apelos sociais momentâneos, assim venha se conduzindo. O aumento mundial do consumo de entorpecentes levou o constituinte de 1988 a inserir no Texto Magno a proibição de benefícios processuais ao traficante; o homicídio de Daniela Perez originou o movimento que culminou com a modificação da Lei dos Crimes Hediondos, agravando penas e proibindo benefícios; a tortura, para a qual a vetusta Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898/65) era mais que suficiente para coibir, também ganhou diploma legal próprio; o trânsito, suas infrações e delitos, é outro exemplo, com a recente edição do novo Código Nacional; a lavagem de dinheiro e o meio ambiente, fauna e flora também estão agora sob a égide de novas leis, etc.

Entretanto, sem questionar a utilidade e necessidade de eventuais dispositivos atualizadores de situações típicas, certo é que, de modo geral, nenhum desses temas ou problemas sociais provocará redução da respectiva criminalidade somente pela existência de novas leis, em geral mais severas.

É que nunca se poderá arredar, pena de se provocar completa destruição do regime democrático, calcado em direitos e garantias individuais, a necessidade da existência de provas suficientes para a condenação. É absolutamente proibido derrogar o princípio in dubio pro reo. Proibido pelo bom senso, antes de mais nada.

A questão da produção e coleta da prova, esta sim, deveria preocupar a sociedade e os governantes, levando-os a melhorar o sistema de investigação, aprimorando-o e modernizando-o tecnicamente de forma a possibilitar mais correta e profunda elucidação dos fatos. A criminalidade moderna deixou de ter aquele caráter individualista, embora a pena tenha que obedecer à regra da individualização. Nossas polícias de investigação continuam utilizando os métodos de outrora, sem muita chance de apresentar ao Ministério Público um conjunto informativo interessante e útil à propositura da ação penal. E o Ministério Público, que não produz a prova penal, apenas a recebe pronta da polícia e formaliza as acusações, permanece manietado a esse sistema, formalizando acusações (oferecendo denúncias) com base em informes coletados pelas autoridades policiais que necessitarão ser melhor esmiuçados em Juízo, o que nem sempre, ou quase nunca, ocorre. Persiste, como se vê, um círculo vicioso: 1 - o Ministério Público recebe um conjunto informativo deficiente, mas, por força do princípio in dubio pro societate, oferece denúncia, embora saiba que essa prova muito raramente será melhorada durante a instrução judicial (o não oferecimento implicaria em análise de mérito de futura ação penal, o que lhe é defeso); 2 - o Judiciário, embora saiba que essa prova muito raramente será melhorada durante a instrução judicial, recebe a denúncia, pois não lhe é permitido nessa fase inicial analisar conjunto probatório que não foi ainda produzido em Juízo (seria prejulgamento da causa, o que não é juridicamente possível); 3 - instaurada a ação penal, na fase instrutória, salvo raríssimas exceções, repete-se, sob o crivo do contraditório, a prova oral inicialmente colhida no inquérito ou, o que é bastante comum, repete-se essa prova apenas em parte, pois testemunhas não são mais encontradas, etc. (o conjunto informativo deficiente é ainda mais reduzido); e 4 - por fim, na fase de mérito, o Judiciário absolve o réu, pois a falta de prova segura e eficiente impõe a aplicação do princípio in dubio pro reo.

Esse sistema, repetitivo e deficiente, deve ser alterado, para que aumente o número de condenações de culpados que são absolvidos por insuficiência de provas e diminua o número de inocentes que são absolvidos por esse mesmo fundamento, pois ser absolvido por "insuficiência de provas" é bastante interessante para os culpados, mas extremamente desagradável e ofensivo para os inocentes. Assim, o salutar princípio de jamais condenar sem provas, tem seu contraponto: o de deixar, no limbo, um fragmento de dúvida na absolvição por eventual apuração deficiente, na hipótese da inocência.

Notas

Jesus, Damásio Evangelista de, "Código de Processo Penal Anotado", Saraiva,, 2ª ed. em CD-ROM, São Paulo, 1997.

Tourinho Filho, Fernando da Costa, "Código de Processo Penal Comentado", Saraiva, São Paulo, 1996.

Carnelutti, Francesco, "As Misérias do Processo Penal", tradução da edição de 1957: Edizione Radio Italiana, pelo prof. José Antonio Cardinalli, Conan, Campinas, 1995.

Higino Cinacchi Júnior
Juiz Federal em São Paulo.



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040