INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 73 - Dezembro / 1998





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

(In) tolerância zero

Tatiana da Fonseca

Acadêmica de Direito em São Paulo e estagiária da Procuradoria de Assistência Judiciária de Bauru (SP)

Estamos vivendo em um mundo violento, não resta dúvida. Homicídios, roubos, estupros já se tornaram notícias corriqueiras em nossos telejornais e a sociedade discute meios de combater a criminalidade. Duas opções parecem se apresentar como viáveis: a política da law and order, plataforma eleitoral de muitos de nossos políticos, ou uma nova visão do Direito Penal, com a mudança do modelo até então adotado, revisando-se as sanções aplicadas aos chamados delinqüentes, com um Direito Penal mais justo e humanitário.

O primeiro caminho nos leva à adoção da chamada "Lei de Lynch", onde a sociedade se apodera do criminoso e o julga, condena e executa, o que não se encontra totalmente distante do que assistimos hoje, onde se permite que emissoras de televisão possam acompanhar a polícia em diligências, expondo os supostos criminosos a um pré-julgamento, não esquecendo de mostrá-los estampados em primeiras páginas de jornais e no horário nobre, acompanhados de alcunhas como assassino, maníaco ou psicopata, numa verdadeira idéia de vingança e execração pública, como práticas antecedentes ao próprio julgamento do acusado.

Encontramos até mesmo defensores ferrenhos da adoção da pena de morte como único meio eficaz para eliminar a delinqüência, ainda que o direito à vida seja garantido por nossa Constituição Federal, que proíbe expressamente a adoção da pena capital, em seu art. 5º, núcleo irreformável da Carta Magna. Não se deve esquecer, também, que para que uma sociedade pudesse vir a aplicar a pena de morte, deveria, antes, ser capaz de afirmar não ter contribuído em nada para a formação deste criminoso.

A segurança e a tranqüilidade social são bandeiras justas e legítimas, no entanto não podemos, em nome dessas bandeiras, permitir que os direitos humanos sejam postergados e esquecidos, sob pena de estarmos admitindo a perigosa premissa de que "os fins justificam os meios".

Não podemos ter uma idéia simplista de que a sociedade se divide em compartimentos estagnados: uma parte sadia e a outra doente, em que estaria ocorrendo o fenômeno da criminalidade, chegando-se à conclusão de que "lugar de bandido é na cadeia e de gente boa é na rua".

Muito desta visão da criminalidade e de um Direito Penal extremamente punitivo e sancionador vem de uma idéia distorcida que fazemos do indivíduo delinqüente. Nossa sociedade não o enxerga como um ser humano, considerando-o, antes, uma pessoa imoral por natureza, como se o crime fosse uma opção, um estilo de vida livremente adotado pelo criminoso. Sua índole o impeliu para o crime, sua visão pervertida do mundo e das relações humanas e sua incapacidade de adequar-se a elas fazem dele algo perigoso aos cidadãos comuns, devendo ser afastado ou, se possível, eliminado, para que a paz possa retornar.

O que queremos dizer aos criminosos, é essencialmente "somos melhores que vocês, somos mais dignos e, portanto, isso nos permite encarcerá-los, torturá-los, retirar de vocês toda a decência e humanidade que lhes resta, porque ousaram perturbar a paz social na qual nos encontramos inseridos".

Não desejamos saber se este delinqüente cresceu num ambiente dominado pela violência, pelo total abandono moral, material e social, sem qualquer opção ou perspectiva de futuro, assistindo muitas vezes a ação de policiais violentos ou dos chamados "justiceiros" que representam, para eles, a justiça de um Estado que os esqueceu, neste País em que ser pobre é quase um crime por si só.

Nenhum de nós, ou poucos vêem no indivíduo infrator um homem comum, levado ao delito por um conjunto muito mais complexo de circunstâncias que uma simples índole perversa.

O criminoso, na maior parte das vezes, não é um doente mental, cabendo-nos perguntar: O que o leva a delinqüir? Não devemos, entretanto, esperar uma resposta simples a esta pergunta e mais, uma resposta sincera será a base para a solução do problema da criminalidade.

O segundo caminho que se apresenta, o do chamado Direito Penal Mínimo, parece para grande parte das pessoas de difícil aplicação, para não dizer utópico. Esta corrente propõe uma volta ao Direito Penal humanitário, de princípios eminentemente protetivos ao indivíduo, diante de um sistema punitivo agressivo, tendencioso e injusto.

Na verdade esta corrente apenas propõe o que o Estado de Direito proclama, mas infelizmente não é capaz de reconhecer e aplicar. Isso porque os direitos fundamentais da pessoa foram pensados, a partir do Iluminismo e da Revolução Francesa, como garantias contra o arbítrio do Estado. Hoje o Estado que os incorporou deveria exigir e promover seu cumprimento por toda a comunidade.

A sociedade vem, através dos tempos, aplicando um Direito Penal repressivo, com constante recrudescimento das sanções como forma de diminuir a criminalidade e, não obstante, não vislumbramos um resultado realmente satisfatório.

Podemos asseverar que isso ocorre por estarmos atacando as conseqüências do delito e não suas causas. Nossa sociedade é injusta, discriminatória, preconceituosa e isso se reflete diretamente em nosso sistema penal. A filosofia simplista de que o crime é um fenômeno cometido apenas nas ruas, por pessoas pobres e incultas, jamais o sendo em palácios públicos, por grandes empresas, empreiteiras ou conglomerados financeiros, jamais por políticos, banqueiros ou pessoas ricas, uma vez que estas pessoas constituem a parte "respeitável" da sociedade, serve apenas para colocar em evidência o aspecto mais banal da criminalidade.

É, por fim, totalmente despropositado pretender que nossas cadeias recuperem quem quer que seja. Pelo contrário, o encarceramento é embrutecedor, degradante, servindo apenas para destruir o pouco de dignidade que resta ao delinqüente.

Não podemos permitir que os direitos primordiais do indivíduo sejam relegados a segundo plano, por mais justa e legítima que seja a reivindicação por segurança, nem podemos admitir que os direitos humanos sejam chamados de "direitos dos bandidos", como se deu recentemente.

Degradar um homem, mesmo que delinqüente, tolerar que seus direitos mais basilares sejam desrespeitados, ainda que para garantir a segurança, não representa apenas um atentado a todas as conquistas do Estado Democrático de Direito, como também um retrocesso histórico, permitindo que se corrompa toda a estrutura do ordenamento jurídico e dos princípios mais elementares dos direitos individuais. Se o direito de um único homem é violado, o direito e a dignidade de cada um de nós também o é.

Não se trata aqui de abolir o Direito Penal, ou mesmo as penas privativas de liberdade ou as sanções a serem aplicadas. Nem se discute que o delinqüente deve ser punido pelo mal que causou com suas ações. O que está em questão é a forma de sancionar este criminoso, que acabará por retornar à sociedade da qual se viu excluído, após o cumprimento da pena contra si imposta e, mais que isto, discutirem-se formas preventivas, para que a sociedade cesse de "produzir" criminosos e de tornar piores os já existentes.

É um caminho difícil, não há dúvida, e sua concretização irá depender de um longo trabalho de reformulação das bases não só do Direito repressivo, como da sociedade como um todo, mas passo a passo é perfeitamente possível chegar-se até um Direito Penal mais justo e humano, menos discriminador e seletivo, investindo-se mais em educação e efetiva recuperação do infrator e em sua reinserção na sociedade, para que não se façam necessários tantos presídios.

Tatiana da Fonseca
Acadêmica de Direito em São Paulo e estagiária da Procuradoria de Assistência Judiciária de Bauru (SP).



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