INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 72 - Novembro / 1998





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A matraca do ministro tagarela e seu crime de responsabilidade

Mauricio Antonio Ribeiro Lopes

Promotor de Justiça em São Paulo, doutor em Direito e professor da FDUSP

Andam dizendo por aí que um tal Ministro teria dito a um monte de jornalistas que a eleição de um Fulano Herculano Certano era imprescindível para o País. Não sei onde vive o tal Ministro, talvez em Brasília (que é efetivamente outro País, embora seja a capital do nosso), mas para o nosso País (com ou sem capital), imprescindível mesmo é democracia e imparcialidade. A segunda é condição da primeira e a primeira, sem a segunda, não serve para nada. E para defesa dessas coisas imprescindíveis ninguém roda matraca pelas ruas. Rodo então eu mesmo, na esperança de que outros venham também bater panelas.

Cidadão especialmente chato que sou, confesso fiquei profundamente aborrecido com a matraca do tal Ministro. É de perder a paciência a falta de senso republicano que domina no Brasil, país de triste sina, sem charme para ser Monarquia, sem competência para ser República e que por isso mesmo, de tempos em tempos, rega uma ditadura aqui, cultiva um déspota (esclarecido ou não) ali e, faça chuva ou faça sol, bajula as oligarquias.

O certo é que diante das afirmações lançadas pelo Ministro tagarela, tem-se plenamente configurada conduta típica enquadrável (ou circundável, se preferirem) como procedimento incompatível com a honra, dignidade ou decoro das funções de Ministro do Supremo Tribunal Federal, o que, num Senado sem Calígulas e outros de mesma estirpe, deveria levar S. Exa. ao destino colorido de outro que lhe sorri à espera de parceiro para o pif-paf.

Com efeito, descrevendo as hipóteses de crime de responsabilidade cometido por Ministro do Supremo Tribunal Federal, dispõe o art. 39 da Lei nº 1.079/50: "São crimes de responsabilidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal: 1) alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do tribunal; 2) proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa; 3) exercer atividade político-partidária; 4) ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; 5) proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções."

É de se ter em vista que o aludido diploma legal refere-se aos crimes de responsabilidade cometidos por ministros do Supremo Tribunal Federal e é exatamente nessa condição, plena e perfeitamente extensiva às funções de Ministro Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que se ora vê cometido o delito de responsabilidade, uma vez que não existe função autônoma de Ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Dispõe a Constituição Federal em seu art. 119, parágrafo único: "O Tribunal Superior Eleitoral elegerá seu presidente e o vice-presidente dentre os ministros do Supremo Tribunal Federal...".

Ademais disso, as funções são cumulativas, posto que ambas as Cortes funcionam ininterruptamente, mesmo durante o processo eleitoral. Trata-se, pois, a função de presidente, como a de Ministro, do Tribunal Superior Eleitoral, de exercício cumulativo, não autônomo, de cargo público da maior importância, respondendo pelo crime de responsabilidade em tela o Ministro do Supremo Tribunal Federal, ainda que sejam os fatos referentes a função exercida no outro Tribunal.

A análise do art. 39, nº 5, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, induz o intérprete à identificação do conceito do que seja proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções.

Uma primeira abordagem desse problema deve revestir a preocupação de distinguir a honra, a dignidade e o decoro pessoalmente considerados em relação ao Ministro do Supremo Tribunal Federal com aqueles atributos devidos não à pessoa, mas às funções que exerce. A distinção é preciosa na exata medida em que afasta o subjetivismo envolto na primeira situação, permitindo uma análise estrita e objetiva quanto à segunda.

Há de se ter em conta que a esfera de vida privada, intimidade, reserva moral de cada agente público ou político é problema exclusivamente seu. Se se embriaga ou prevarica (fora dos casos do Direito Penal), não haverá jamais motivo algum para o processo por crime de responsabilidade. Assim, se um Ministro for encontrado bêbado, rolando imundo pelas sarjetas de Brasília, falando coisas obscenas; ou descobrindo por debaixo da saia de uma sirigaita em desfile de carnaval se há algum pedaço de pano ou renda entre a fantasia e a realidade; embora se possa dizer que tais comportamentos sejam incompatíveis com o que se espera de um Ministro, jamais se poderá aí, por si só, encontrar-se motivo relevante para o processo por crime de responsabilidade, vez que, nesse caso, a honra, a dignidade ou o decoro atirados ao lixo são os seus próprios (e tem gente que não se importa muito com isso) e não o de suas funções (e aí nós nos importamos muito com isso).

Ao contrário, se com seu comportamento atinge não o conceito externo que se faz do titular da função pública, mas o conceito externo que se projeta em relação à própria função pública, e o atingimento desse conceito chega a alcançar a noção de procedimento incompatível com a honra, dignidade ou decoro das funções, aí sim tem-se o crime de responsabilidade.

A questão, pois, envolve discutir se a manifestada e alardeada preferência do Ministro por um dos candidatos à Presidência da República corresponde ou não a procedimento incompatível com a honra, dignidade ou decoro das funções de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

O sigilo do voto é para o cidadão comum um direito que lhe garante a plena responsabilidade de escolher, sem pressões e sem conseqüências, os candidatos que, a seu juízo, melhor atendam às expectativas de exercício do poder ou mesmo de interesse pessoal.

Para o agente público investido em funções como, por exemplo, a de fiscalização de eleições (procurador geral eleitoral) ou de solução de litígios envolvendo temas que se inserem na competência originária do Tribunal Superior Eleitoral, muito ao contrário o sigilo do voto, além de um direito, é um dever de ofício.

Como dispõe o art. 22, inc. I, do Código Eleitoral, compete ao Superior Tribunal Eleitoral processar e julgar originalmente: "a) o registro e a cassação de registro de partidos políticos, dos seus Diretórios Nacionais e de candidatos à Presidência e Vice-Presidência da República; ... d) os crimes eleitorais e os comuns que lhes forem conexos cometidos pelos seus próprios juízes e pelos juízes dos Tribunais Regionais; e) o habeas-corpus ou mandado de segurança, em matéria eleitoral, relativos a atos do Presidente da República, dos ministros de Estado e dos Tribunais Regionais; ou, ainda, o habeas-corpus quando houver perigo de se consumar a violência antes que o juiz competente possa prover sobre a impetração; f) as reclamações relativas a obrigações impostas por lei aos partidos políticos, quanto à sua contabilidade e à apuração da origem dos seus concursos; g) as impugnações à apuração do resultado geral, proclamação dos eleitos e expedição de diploma na eleição de Presidente e Vice-Presidente da República"; isso induz o magistrado eleitoral, e notadamente o ministro do Superior Tribunal Eleitoral, e mais notadamente ainda o presidente do Tribunal Superior Eleitoral a observar com estrita imparcialidade, eqüidistância e isenção os pleitos que forem formulados em função de candidaturas à Presidência da República.

Assim, ainda que no seu íntimo se comporte com essas qualidades, a declaração, nos moldes como foi feita e em razão da publicidade que quis dar a ela, o inabilita para o exercício da função judicante em matéria eleitoral, e corresponde a desprezo, do próprio agente, à dignidade e ao decoro devidos à função que exerce, expressando, literalmente, seu ponto de vista sobre a conveniência absoluta (imprescindível, foi a expressão utilizada para se referir à eleição de determinado candidato) de se preferir um candidato a outro, o que implica em confissão de parcialidade.

Como visto pelo art. 22 do Código Eleitoral, são vários os temas que podem atingir diretamente a competência do Tribunal Superior Eleitoral em questões envolvendo diretamente o Presidente da República. Daí a extrema e imperiosa necessidade de se resguardar em grau máximo a imparcialidade da mais alta Corte Eleitoral, o que deixou de ser feito pelo Ministro em questão.

O primeiro dever da Magistratura é o de imparcialidade e isso vem expresso nos diversos incisos dos arts. 134 e 135 do Código de Processo Civil ao disciplinar os institutos do impedimento e da suspeição do juiz. Vê-se, da leitura desses citados dispositivos, que "Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário: I - de que for parte; II - em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha; III - que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou decisão; IV - quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta, ou na linha colateral até o segundo grau; V - quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de algumas das partes, em linha reta ou, na colateral, até o terceiro grau; VI - quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.

Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando: I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes deste, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau; III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de algumas das partes; IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio; V - interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes. Parágrafo único. Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo".

Em todos esses dispositivos vê-se de forma direta ou indireta, o dever de imparcialidade, isenção, eqüidistância das partes envolvidas nas lides que deve nortear a atividade do Poder Judiciário e de seus membros.

Em matéria eleitoral o tema é ainda mais palpitante, uma vez que expressa disposição do Código Eleitoral regula especial suspeição dos magistrados nessa seara. Assim, dispõe o art. 20 do Código Eleitoral: "Perante o Tribunal Superior, qualquer interessado poderá argüir a suspeição ou impedimento dos seus membros, do procurador geral ou de funcionários de sua secretaria, nos casos previstos na lei processual civil ou penal e por motivo de parcialidade partidária, mediante o processo previsto em regimento".

Vê-se assim especial qualidade dessa norma para garantir, em matéria eleitoral, ainda maior isenção, imparcialidade e eqüidistância das partes envolvidas nas lides eleitorais. Bem por isso que o exercício de atividade político-partidária por membro do Supremo Tribunal Federal acarreta, por si só, a tipificação da conduta como crime autônomo de responsabilidade.

Natural que atentam à dignidade e ao decoro da função exercida por Ministro do Supremo Tribunal Federal declarações de preferência contundentes a um determinado postulante de cargo de eleição majoritária — chegando a afirmar a imprescindibilidade de sua eleição — e de cuja fiscalização, disciplina e solução de lides acha-se incumbido pela Constituição Federal e pelo Código Eleitoral.

O gesto do Ministro tagarela configura, ademais de crime de responsabilidade, ato de improbidade administrativa atentatório contra os princípios da administração pública nos termos do art. 11 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, e com sanção prevista no art. 12, III, da mesma lei, assim expressos os dispositivos: "Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições... Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações: III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de 3 (três) a 5 (cinco) anos, pagamento de multa civil de até 100 (cem) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 3 (três) anos".

Ora, a simples possível caracterização do ato do Ministro matraca como ato de improbidade administrativa caracteriza o procedimento de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções, uma vez que não se esperam de membros da mais alta Corte de Justiça do País comportamentos desse jaez, capazes de comprometer o conceito público de todo o Poder Judiciário.

O motivo de parcialidade partidária dá-se independentemente de qualquer filiação — que por si só seria fato típico de crime de responsabilidade — mas ante a mera exteriorização pública da preferência revelada pelo magistrado, sobretudo em casos de eleição majoritária.

A violação do dever de imparcialidade corresponde à mais grave infração ética, e portanto atentatória à dignidade e ao decoro das funções de um magistrado.

Dentro do marco do modelo democrático, o juiz requer independência na medida em que é o pressuposto indispensável da imparcialidade, que é caráter essencial da jurisdição (Eugenio Raúl Zaffaroni, "Poder Judiciário: Crises, Acertos e Desacertos", São Paulo, RT, 1995, p. 91).

A preocupação pela imparcialidade, em nossa concepção do mundo e do Direito, quer dizer, nos limites conceituais das modernas democracias, é algo que somente interessa às democracias, que, ademais, são as únicas em condições de provê-la.

Há um requisito prévio e fundamental para que a atividade jurisdicional, exercida pelo Poder Judiciário, possa cumprir adequadamente seus papéis constitucionais. Trata-se de algo que está na base da teoria da divisão de poderes e que consiste em sua total e irrestrita independência e imparcialidade em relação às partes e aos outros poderes, ainda que democráticos (Luigi Ferrajoli, "Justicia penal y democracia: el contexto extra-procesal", "Jueces para la Democracia, Información y Debate", nº 4, Madrid, set./1988, p. 5).

Ao fazer a proclamação de sua preferência o Ministro tagarela, como simples cobertura consciente ou inconsciente de uma parcialidade ideológica, "ao resultar a sua compreensão apenas em um sinal de escassa inteligência ou de imaturidade onipotente" (Zaffaroni, ob. cit., p. 92), leva-nos a indagar até que ponto se pode considerar sua atuação, até então e a partir de então, operada com imparcialidade, tal como exige a jurisdição?

Ora, na exata medida em que se tem a declaração de preferência político-partidária do Presidente do Tribunal Superior Eleitoral perde-se a noção de imparcialidade para condução das atribuições previstas no art. 22 do Código Eleitoral, em especial nos incisos citados que dizem respeito direto a resolução de conflitos que envolvam o Presidente da República em matéria eleitoral.

São razões como essa e mais, a afirmada em tom solene e grave por Canotilho, a seguir, que levam à conclusão da prática do crime de responsabilidade aludido:

"Não está o juiz acima da Constituição. A pretexto do estatismo e do totalitarismo legislativo, generalizou-se a tendência para falar do crepúsculo do Deus-lei e inventar um novo ídolo: o Deus-direito-juiz. Quer... proclamando com arrogância a elite dos juízes como a aristocracia de amanhã, quer deslocando a problemática da aplicação do direito para o problema, sem curar de apoios normativos, quer afirmando o caráter produtivo da interpretação jurídica, sem se definirem os limites desta produção judicial, quer convertendo o juiz em agente da emancipação social, assiste-se uma onda de inimizade legal, cuja conformidade com o Estado Democrático é mais que questionável" ("Direito Constitucional", v. II, Coimbra, Almedina, 1981, p. 11).

Assim, é de se esperar que alguém (e de preferência muitos, legiões de cansados de matracas e tagarelas) denuncie(m) o ministro como incurso nas penas previstas pelo art. 2º da Lei nº 1.709, de 10 de abril de 1950, por infração ao disposto no art. 35, nº 5, do citado diploma legal e o faça contar histórias de suas preferências aos seus netos e não à imprensa do País.

Essa mania de não fazer a língua caber na boca está tomando conta do País em lugares onde silêncio é ouro (e com a bolsa em queda seria bom economizar). Lembro-me de uma frase atribuída a Ruy Barbosa segundo a qual "muitas vezes é melhor ficar calado e deixar que pensem que somos estúpidos do que abrir a boca e dissipar todas as dúvidas". Ruy estava certo... outra vez, lástima que nossos antepassados nunca o elegeram presidente... esse sim teria sido imprescindível e nenhum ministro precisaria dizê-lo.

Mauricio Antonio Ribeiro Lopes
Promotor de Justiça em São Paulo, doutor em Direito e professor da FDUSP.



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