INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 71 - Outubro / 1998





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

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Editorial

A vulgarização do crime hediondo

Antônio Celso Campos de Oliveira Faria

Promotor de justiça em São Paulo.

Com o advento da Lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998, chegamos ao irracionalismo pleno em matéria de legislação penal. A Lei nº 9.677 altera dispositivos do Capítulo III do Título VIII do Código Penal, destacando-se especialmente as alterações relativas aos crimes de corrupção, adulteração ou falsificação de substância alimentícia ou medicinal, previsto no art. 272 do CP, e de alteração de substância alimentícia ou medicinal, previsto no art. 273 do CP.

Em meio a ausência quase total de fiscalização por parte do Estado, e denúncias por todo o Brasil a respeito da falsificação e adulteração de medicamentos, fatos esses ampliados pela cobertura feita com dramaticidade pela mídia, foi sancionada a Lei nº 9.677/98, dando a falsa impressão de que os problemas serão solucionados e os criminosos exemplarmente punidos.

No dia 13 de agosto de 1998, dando-se seqüência ao irracionalismo total do legislador, o jornal "Folha de S. Paulo" publicou matéria com o seguinte título: "Falsificar remédios vira crime hediondo". Segundo o texto, "A Câmara de Deputados aprovou ontem, em votação simbólica, projeto de lei que classifica a falsificação e adulteração de remédios e alimentos como crimes hediondos, a exemplo do que ocorre com crimes de estupro, latrocínio, seqüestro e homicídio por grupos de extermínio, entre outros. (...) O projeto deverá ser votado ainda hoje pelo Senado. Há acordo com a Câmara e com o Palácio do Planalto para que o texto do projeto não seja alterado e, dessa forma, torne-se lei ainda nesta semana, com a sanção do presidente Fernando Henrique Cardoso".

É estarrecedor verificar o processo legislativo no Brasil, especialmente em se tratando de matéria penal. Com a proximidade das eleições de 1998, o Congresso Nacional, em sintonia com o governo, aprova aos trancos e barrancos leis absurdas, com o interesse claro de desviar a atenção dos reais problemas que levaram o País a esse quadro trágico da saúde pública. Os políticos que cumprem seus atuais mandatos, incluindo-se o Presidente da República, elaboram um texto de lei atabalhoado com a intenção de demonstrar o aspecto "atuante" do Executivo e do Legislativo.

Esse entulho autoritário que está sendo produzido sem a menor consciência de suas conseqüências, traz sérios riscos às garantias individuais previstas na Constituição Federal, gerando exatamente o efeito contrário ao desejado.

A expressão "crimes hediondos" encontra-se no art. 5º, XLIII, da Constituição Federal. Assim, observa Alberto Silva Franco que "a própria Constituição restringiu direitos por ela enunciados, por força de interesses políticos baseados no movimento da law and order, onde era preciso, com urgência, restabelecer a lei e a ordem, exigências inafastáveis de todas 'as pessoas decentes', incapazes de 'comportamentos desviados'"(1).

A Lei nº 8.072/90, que deveria ter como objetivo básico definir os contornos legais e fixar a área de significado do crime hediondo, acabou apenas por indicar quais crimes seriam qualificados como "hediondos". Como destacou o autor citado: "o legislador preferiu adotar um sistema bem mais simples, ou seja, o de etiquetar, com a expressão 'hediondo', tipos já descritos no Código Penal ou em leis penais especiais. Desta forma, não é 'hediondo' o delito que se mostre 'repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjeto, horroroso, horrível' (Morais, 'Dicionário Morais', 5º/657, 1953), por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execução, ou pela finalidade que presidiu ou iluminou a ação criminosa, ou pela adoção de qualquer outro critério válido, mas sim aquele crime que, por um verdadeiro processo de colagem, foi rotulado pelo legislador".

A existência de casos concretos de extorsão mediante seqüestro, principalmente o caso Medina e o caso Abílio Diniz (coincidentemente também ocorridos antes das eleições), foi determinante para a confecção da Lei de Crimes Hediondos. As alterações ocorridas em 6 de setembro de 1994, através da Lei nº 8.930, que incluiu o homicídio qualificado entre os crimes hediondos, também surgiu em meio à catarse popular insuflada pela mídia, especialmente pela Rede Globo, diante do brutal homicídio de Daniela Perez.

Apesar da ausência de mecanismos eficazes que controlem as fraudes de medicamentos, o governo transmite a falsa aparência de solução através de leis severas, onde a pena do art. 273 do CP salta de um a três anos de reclusão, para dez a quinze anos. É evidente que esta lei elaborada sem critérios técnicos mínimos, baseada em casos recentes, envoltos pela comoção popular, gera uma distorção assustadora que, no futuro, pode prejudicar milhares de cidadãos que, embora venham a cometer crimes de falsificação ou adulteração de alimentos, poderiam perfeitamente sofrer penas adequadas ao crime praticado, sem a necessidade do terrorismo estatal.

As leis precisam ter respaldo antropológico. Na valorosa obra de Raúl Cervini, "Os Processos de Descriminalização", alerta o autor: "hoje em dia, o delito sobrepassou as previsões jurídicas e requer urgentemente ser visto dentro de todo o contexto social, pois mais do que um dado normativo, é o produto de uma concorrência de fatores sociais, econômicos, políticos, psicológicos e culturais"(2).

A revista "Veja", ano 31, nº 27, de 8 de julho de 1998, publicou matéria sobre "O paraíso dos remédios falsificados". Em determinado trecho, aponta alguns motivos que facilitariam o comércio de remédios ilegais: a) a população brasileira é a quarta maior consumidora de medicamentos do mundo. Perde apenas para os americanos, franceses e alemães; b) há no País uma quantidade exagerada de farmácias — 55.000 —, quando o número ideal, segundo a OMS, seria de no máximo, 25.000; c) no Brasil, de cada duas pessoas, uma é adepta da automedicação; d) há lei mas não há fiscalização. De cada três remédios vendidos no País, apenas um é receitado por médico; e) os brasileiros são supermedicados. Um cidadão sadio consome, nos países desenvolvidos, em média, três caixas de remédios por ano. Aqui, o mesmo cidadão sadio consome onze; f) metade dos medicamentos prescritos são desnecessários. A maioria contra gripe.

As farmácias deveriam ter a presença diária de um farmacêutico. Nos crimes de roubo e furto de carga, os remédios são um dos artigos preferidos dos criminosos. Assim, a impunidade não decorre do fato do art. 273 do CP estabelecer pena de um a três anos, ou, atualmente, pena de 10 a 15 anos. Com essa legislação irracional tornando tais crimes hediondos, haverá uma natural resistência dos juízes na sua aplicação, pois não adianta punir aqueles indivíduos que praticam a pequena fraude sem maiores conseqüências, sem que se rompa a estrutura maior de corrupção das quadrilhas especializadas, dos fiscais corruptos, da efetiva punição dos comerciantes que vendem sem receita, da orientação social a respeito da desnecessidade de muitos medicamentos (os remédios para a gripe, por exemplo, combatem os efeitos e não a doença).

O grave problema dos medicamentos falsificados possui um quadro bem mais complexo do que a mera alteração dos tipos penais que punem tais condutas. É a própria questão da saúde pública no Brasil que precisa ser discutida e alterada.

Curiosamente, essa desinformação generalizada, aliada ao interesse de grupos poderosos e a manipulação do discurso pelas elites, é que atinge o lado mais fraco da sociedade. São os pequenos criminosos que serão atingidos pelo rigor da lei. Por sua vez, é a população carente que não dispõe de planos privados de saúde que sofre com a falta de uma política de saúde pública coerente e bem definida. José Eduardo Faria aponta essa nova criminalização de condutas, como fruto da economia globalizada que impera hoje em todo o mundo. Em recente artigo publicado na "Revista do IBCCRIM", destaca que: "...enquanto nos demais ramos do Direito positivo vive-se um período de desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização, no Direito Penal se verifica a definição de novos tipos de delitos; a criminalização de várias atividades e comportamentos em inúmeros setores da vida social; a relativização dos princípios da legalidade e da tipicidade, mediante a utilização de regras com conceitos deliberadamente indeterminados, vagos e ambíguos, ampliando extraordinariamente a discricionariedade das autoridades policiais e com isso lhes permitindo invadir esferas de responsabilidade do Judiciário; e, por fim, a redução de determinadas garantias processuais, mediante, por exemplo, a inversão do ônus da prova, passando-se a considerar culpado quem não provar sua inocência"(3).

A vulgarização do conceito de crime hediondo gera grave insegurança pública e implica em perigosa ofensa às garantias individuais dos cidadãos. O mais grave é que o Congresso e o governo agem rápido nesse tipo de monstrengo jurídico, mas as conseqüências são bem mais difíceis de serem revertidas. O irracionalismo da Lei nº 9.677 e da lei que torna tais crimes hediondos equipara o falsário de aspirina ao autor do latrocínio. Enfim, é tudo muito hediondo...

Notas

(1) Alberto Silva Franco, "Crimes Hediondos", São Paulo, Ed. RT, 3ª ed., pp. 34/35.

(2) Raúl Cervini, "Os Processos de Descriminalização", São Paulo, Ed. RT, 2ª ed., p. 67.

(3) José Eduardo Faria, "A transformação do Direito" in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 22, p. 239.

Antônio Celso Campos de Oliveira Faria
Promotor de justiça em São Paulo.



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