INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 69 - Agosto / 1998





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A anistia desejada e a realizada

Eugênio Pacelli de Oliveira

Procurador da república em Minas Gerais, professor de Processo Penal na Faculdade de Direito Milton Campos e mestrando em Ciências Penais na UFMG

Em 26 de maio último, foi publicada a Lei nº 9.639, de 25 de maio de 1998, que, entre outras providências, concedia anistia aos agentes políticos e demais responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea "d" do art. 95 da Lei nº 8.212/91 e no art. 86 da Lei nº 3.807/60, dispositivos que, como se sabe, abrigam os tipos penais que cuidam dos crimes previdenciários (art. 11 e seu parágrafo único).

Ao que parece, a "intenção" primeira — a do caput — foi o afastamento da responsabilidade penal dos chefes dos Executivos municipal e estadual, quando acusados do não repasse, no prazo legal, das contribuições previdenciárias arrecadadas dos servidores com os quais mantinham, ainda, relação de emprego. Já a "segunda" — do parágrafo único — seria a exclusão daquelas pessoas que, ainda que não agentes políticos, teriam sido ou poderiam ser responsabilizadas juntamente com estes ou, ainda mais, no lugar destes, quando presente a hipótese de imputação feita a secretários e/ou outros integrantes da Administração Pública. Vejamos a lei:

"Art. 11. São anistiados os agentes políticos que tenham sido responsabilizados, sem que fosse atribuição legal sua, pela prática dos crimes previstos na alínea 'd' do art. 95 da Lei nº 8.212/91 e no art. 86 da Lei nº 3.807/60.

Parágrafo único. São igualmente anistiados os demais responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea 'd' do art. 95 da Lei nº 8.212/91 e no art. 86 da Lei nº 3.807/60".

Muito bem. Qual seria a pretendida extensão do âmbito de aplicação do parágrafo único do transcrito dispositivo legal? A inclusão, apenas, de agentes políticos responsabilizados porque atribuição legal deles a prática dos citados atos (crimes) ou dos não agentes políticos também para os quais não se atribuísse a prática dos atos (crimes) definidos nos tipos penais objeto da anistia?

A nosso aviso, nem uma coisa nem outra.

Na lição do insuperável Aníbal Bruno, das formas de indulgência estatal, "...a de força extintiva mais enérgica e, portanto, de mais amplas conseqüências jurídicas é a anistia. ...É uma medida de interesse público, motivada, de ordinário, por considerações de ordem política, inspiradas na necessidade de paz social. Dirige-se propriamente a determinados fatos, não a determinados indivíduos. Dela se aproveitarão todos aqueles que tenham participado de tais acontecimentos, salvo os que dela tenham sido excluídos, geralmente por circunstâncias particulares que agravam a sua situação em face do Direito" (grifamos — "Direito Penal", Tomo 3º, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1984, pp. 202/203).

E é exatamente em razão de se dirigir a anistia a determinados fatos — e não a indivíduos — que a única leitura possível do parágrafo único do aludido art. 11 da recente Lei nº 9.639/98 — com a redação original — é a de que os destinatários abrangidos pela expressão "os demais responsabilizados" são todos aqueles que praticaram os fatos descritos na alínea "d" do art. 95 da Lei nº 8.212/91 e no art. 86 da Lei nº 3.807/60, independentemente de se tratar de conduta realizada no exercício de função pública ou na atividade privada. É de se atentar, no particular, que seja em uma ou outra hipótese, a ação — fato anistiado — dirigiu-se à apropriação — ou não repasse, como queiram — de contribuições previdenciárias que têm por responsável, pela arrecadação e administração, o Instituto Nacional do Seguro Social, autarquia federal que, por força de norma constitucional, deverá reverter e distribuir tais recursos a todos os beneficiários do sistema de seguridade social.

Note-se, mais e também, que nem a lei poderá alterar a definição do interesse público na arrecadação de tais recursos, como forma de legitimar, via anistia, apenas os desvios e apropriações praticadas por agentes públicos (políticos ou não). Em outras palavras, seja aquela praticada pelo agente público, seja aquela praticada pelo particular, em um e outro caso haverá sempre lesão ao erário da autarquia federal e, em conseqüência, de todos os beneficiários da Previdência Social. A conduta de ambos, público e particular, é assim igual e potencialmente lesiva, daí por que, se os critérios de depuração do espírito e do corpo social (justificativa última da anistia) devem levar em linha de consideração as conseqüências dos crimes anistiados, não há como negar que esta, traduzida por Aurelino Leal, no "esquecimento jurídico de uma ou muitas infrações penais", deverá ser aplicada a todos os autores dos fatos anistiados.

E é exatamente por isso que a questão de se saber qual o texto publicado conteria o vício da inconstitucionalidade formal — no processo legislativo — não tem a relevância que, à primeira vista, se apresenta ao menos diante do entendimento que ora se manifesta. É que o objeto da anistia é o desvio de verbas públicas federais. A partir daí, qualquer consideração que se faça sobre os sujeitos da conduta avançará no terreno da culpabilidade, e terá que admitir que tanto o agente público quanto o particular podem, em tese, agir impelidos por razões da mesma ordem, merecendo, ambas as condutas, maior ou menor reprovação. Mas aí, tem-se que, seguramente, só a análise de cada caso concreto é que poderá amparar um juízo de desvalor da ação realizada, sobretudo porque também o agente político pode, em tese, desviar as contribuições previdenciárias para a satisfação de interesses pessoais.

Entretanto, percebendo a elasticidade — ou erro — resultante do texto primitivo, já no dia seguinte ao da publicação da Lei nº 9.639/98, o governo federal fez republicar a aludida Lei nº 9.639/98, em data de 27 de maio de 1998, para dela excluir todo o parágrafo único do art. 11. Aqui a hipótese nem é de se concluir que a emenda seria pior que o soneto. É que a emenda, por obra e graça do disposto no art. 1º, § 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, haverá de ser recebida como lei nova, porque destinada a corrigir lei já em vigor, a tanto bastando que se veja o contido no art. 14 de ambos os textos, mas sobretudo aquele publicado no dia 26 de maio de 1998, assegurando que aquela lei entraria em vigor na data de sua publicação, portanto, naquele mesmo dia 26 de maio de 1998.

Resta então concluir, também à consideração de que os operadores do Direito não poderão se calar ante uma indisfarçada e absurda manobra eleitoreira — se comprovado o vício na primeira publicação — que a anistia assim realizada, embora não querida, atingirá todos os fatos praticados até o dia 27 de maio do corrente ano de 1998 — independentemente da eventual constatação do já considerado vício de inconstitucionalidade em um ou outro texto —, abrangendo tanto aqueles em que esteja em curso ação penal persecutória, como aqueles já definitivamente julgados. Outra vez, na companhia de Aníbal Bruno, "...a anistia alcança o crime em qualquer momento da marcha do processo ou mesmo antes de que este se inicie ou depois da condenação" (ob. cit., p. cit.). No mesmo passo, a jurisprudência do STF:

"A anistia, que é efeito jurídico resultante do ato legislativo de anistiar, tem a força de extinguir a punibilidade, se antes da sentença de condenação; ou a punição, se depois da condenação. Portanto, é efeito jurídico, de função extintiva, no plano puramente penal (STF, Rec. nº 1.433-2/RJ, rel. Firmino Paz, DJU 26.03.82, p. 2.561)" — apud "Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial", Volume 1, Tomo I, 6ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 1.593).

Eugênio Pacelli de Oliveira
Procurador da república em Minas Gerais, professor de Processo Penal na Faculdade de Direito Milton Campos e mestrando em Ciências Penais na UFMG.



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