INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 67 - Junho / 1998





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A polícia judiciária e o art. 303 do CTB

Alexandre Meyr

Delegado de polícia em Cunha Porã (SC)

O novel Código de Trânsito Brasileiro, no capítulo concernente aos crimes de trânsito, tipificou várias condutas, além de atribuir nova roupagem a crimes já existentes em nosso ordenamento jurídico (sem contudo derrogá-los), dando ênfase ao seu cometimento quando o sujeito ativo estiver na direção de veículo automotor (arts. 302 e 303).

Sobre estes, há que se enfatizar a tristeza e a carência de elementos técnicos com que foram tratados — decorrendo inúmeras observações e críticas as mais variadas, pelos doutos.

Vislumbramos que tratam do homicídio e da lesão corporal culposos, respectivamente. Diferentemente da tipificação que o Código Penal havia estabelecido a esses injustos, o núcleo utilizado pelo atual legislador deixa muito a desejar — naquele repositório temos o preceito primário assim definido: Art. 121. Matar alguém; e com tal núcleo temos o nomen juris de Homicídio simples. O § 3º desse artigo faz referência ao denominado homicídio culposo. Ressalte-se que o verbo que determina a conduta que se tem como injusta, neste caso, está explícito, expresso, no caput do artigo, sequer deixando margens a dúvidas. Diga-se o mesmo quanto à lesão corporal culposa, entendida naquele código como ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem, mediante negligência, imprudência ou imperícia do autor do fato. Já no novo diploma legal, exige-se o acontecimento praticado na direção de veículo automotor.

Entrando no mérito do apenamento cominado à lesão corporal culposa pelo CTB, percebemos que isso fere os princípios da isonomia e da proporcionalidade das penas, pois, enquanto a lesão dolosa sem gravidade permanece apenas com detenção, de três meses a um ano, e mesmo à lesão culposa (porque não derrogada) é cominada pena de detenção de dois meses a um ano, o preceito recente estabelece que, agindo culposamente na direção de veículo automotor, fica o agente sujeito à detenção, de seis meses a dois anos (por conseguinte, o dobro da pena daquele crime, tanto no grau mínimo quanto no máximo).

O objetivo deste comentário, porém, tem em vista a atuação da Polícia Judiciária, ao tomar conhecimento da ocorrência desse ilícito penal.

No que concerne às suas atividades, temos notado que há divergências nos argumentos já expendidos por alguns estudiosos do assunto. Deveras, enquanto uns entendem ser cabível, na espécie, a lavratura de termo circunstanciado(1), outros afirmam deve proceder a autoridade policial à elaboração de inquérito policial(2).

Deixou claro o legislador a necessidade de representação da vítima, ou de quem tenha qualidade para oferecê-la, para que seja iniciada a ação penal respectiva — en passant, trata-se de ação penal pública condicionada à representação. Depreende-se tal interpretação em virtude do que dispõem os arts. 291, parágrafo único, da recente lei, e 88 da Lei nº 9.099/95 (que instituiu os Juizados Especiais Criminais e Cíveis).

Data venia das opiniões em contrário — e não obstante logo à primeira leitura havermos demonstrado tendência a aceitar a tese que defende a lavratura de termo circunstanciado —, ousamos divergir e entender seja necessária a instauração do competente inquérito policial, mediante representação, para que, posteriormente, possa ser deflagrada, respaldada nesse documento, a ação penal respectiva pelo Ministério Público.

E explicamos por que motivos chegamos a essa conclusão: determina o art. 291, caput, da Lei nº 9.503/97 serem aplicáveis aos agora chamados crimes de trânsito as normas gerais dos Códigos Penal e Processual Penal e, no que couber, a Lei dos Juizados Especiais. Ocorre que tem esta como escopo regular os trâmites, seja no âmbito da Polícia Judiciária, seja perante os Juizados Especiais Criminais, das infrações penais de menor potencial ofensivo, assim consideradas aquelas a que a lei comine pena máxima não superior a um ano. Entretanto, em o novo repositório, a pena máxima atribuída ao crime de lesão corporal culposa está estabelecida em dois anos(3). Decorre desse fato que o julgamento da lesão corporal culposa, quando o infrator estiver na direção de veículo automotor, será da competência do Juízo Comum. O silogismo parece simples e ingênuo.

Entanto, por que instaurar a autoridade policial, um procedimento inquisitorial sabidamente mais alongado que o termo circunstanciado, se, quiçá por exceção à regra, poderia ser adotado este procedimento, até mesmo para desafogar os escaninhos cartorários das delegacias de polícia e dos Juizados Comuns, além de — na conformidade de argumentos nesse sentido — visar à celeridade e à imediata resposta dos órgãos incumbidos da repressão com o escopo de oferecem exemplo à sociedade?

Em primeiro lugar, há de se levar em conta que o crime do art. 302, como desde 26.11.95 (agora, por força do art. 88 da Lei nº 9.099/95, a que o parágrafo único do art. 291 do CTB fez expressa referência), depende de representação oferecida pela vítima, ou quem legalmente a represente. Assim, como é consabido, da maioria dos eventos de trânsito levados ao conhecimento das autoridades policiais, mormente quando ocorram somente danos ou deles decorram lesões leves, as partes têm antes interesse nos boletins de ocorrência — para acionarem as companhias seguradoras ou mesmo para firmarem acordo entre si — que na condenação dos autores dos episódios, quando configurem ilícito penal. Somos levados a crer que, portanto, a Polícia Judiciária atuará, certamente com mais eficiência, na apuração daqueles crimes culposos de trânsito cujas proporções, em nível de lesão corporal, tenham maior repercussão — e onde, evidentemente, a vítima ou seus representantes possuam interesse em sua completa apuração e cominação de penas aos seus autores.

Em segundo e último lugar, posto haja quem possa entender ser um retrocesso a elaboração de inquéritos policiais para a elucidação de crimes de lesão corporal culposa — substituído que foi esse procedimento pelo simples termo circunstanciado, com o advento da Lei dos Juizados Especiais, que visou à celeridade nos trâmites para o deslinde dessas questões —, ousamos afirmar que àqueles autos, quando instaurados (porque somente o serão, sob nossa ótica, em face da peça motivadora, qual a representação) serão carreados elementos necessários e suficientes que possibilitarão, na fase seguinte, perfeito esclarecimento dos acontecimentos tanto para o titular da ação penal quanto para o julgador, sem prejuízo de eventual composição de danos entre as partes interessadas, ou da aplicação de penas ou multas, propostas pelo Ministério Público, como prescrevem os arts. 74 e 76 da Lei nº 9.099/95, aplicáveis nesses casos.

A propósito, interessante indagação ressurte em virtude do disposto no parágrafo único do art. 74 dessa lei, verbis: Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação. Tem por escopo esse preceito a composição dos danos civis firmada entre as partes que, reduzida a escrito, é homologada pela autoridade judiciária mediante sentença irrecorrível.

Como proceder, então, o delegado de polícia: a) deve instaurar inquérito policial, mesmo sem a devida representação, verificando, na sua elaboração, eventual composição dos danos civis, e, finalizado o procedimento, encaminhá-lo ao Juizado Especial para fins de homologação desse acordo, com o que faz a vítima renunciar ao direito de representação? b) ou deve instaurar o inquérito policial, mediante representação da vítima (aguardando-se, pois, a manifestação do interesse desta), igualmente elucidando, no trâmite do procedimento, eventual composição desses danos, e concluí-lo para a apreciação do Juízo Comum? c) ou deve, sob outro ponto de vista, lavrar termo circunstanciado, deixando à apreciação do Poder Judiciário, entre outros caminhos, se se trata de caso de instauração de inquérito policial?

Pelos ditames da Lei dos Juizados Especiais, é a fase da audiência preliminar (judicial, portanto) que se presta à possível composição dos danos civis. Todavia, diante do novo ordenamento jurídico, temos que possa haver prejuízo na aplicação imediata daqueles preceitos. Emerge, dessarte, a sutileza do exegeta, fazendo subsumir os fatos à ordem legal aplicável segundo a interpretação, em nosso entender, mais conveniente ao interesse público.

Segundo nossa posição, alijamos de nosso pensamento a última hipótese, e acreditamos ser inviável adotar-se a primeira posição, fulcrando-nos no art. 5º, § 4º, do Estatuto Processual Penal, pelo qual o inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado.

Tendemos, dessa forma, a aceitar a segunda tese levantada, pela qual a autoridade policial, mercê da representação oferecida pela vítima, deflagra o inquérito policial. Ao lado da apuração das circunstâncias em que ocorreu o evento danoso e de sua autoria, carreia para os autos elementos que possam configurar possível acordo entre as partes quanto aos danos sofridos. Concluídas as investigações, remete esse procedimento ao Juízo Comum, que, por sua vez, se valerá da disposição contida no parágrafo único do art. 291 do CTB — aplicando, então, os arts. 74 e 76 da Lei nº 9.099/95 (haja vista já estar suprida a exigência do art. 88 desta lei).

E, em juízo, perquirindo a autoridade judiciária sobre a composição dos danos, comprovada ou existindo esta, que interesse terá a vítima em prosseguir na persecução penal contra o autor do injusto, ou, noutra alheta, como ficará a situação daquela representação? Vemos que a conjugação das normas propiciará, pois, a finalização do feito quando houver esse acordo, que será homologado pelo juiz; embora aquela representação (autorizadora da atividade inquisitorial presidida pelo delegado de polícia), vislumbramos que a homologação do acordo acarretará, de fato, a renúncia ao direito de seu exercício, conquanto interpretada esta como retratação da representação já oferecida na fase policial. Por outra senda, inexistindo composição dos danos civis, firma-se o procedimento judicial na seqüência preconizada pela legislação.

Coaduna-se esse pensamento, aliás, com a atuação da Polícia Judiciária nos casos de prisão em flagrante (não ocorrendo a hipótese prevista no art. 301), devendo ficar expressa no respectivo auto a representação oferecida pela vítima, sem prejuízo de posterior acordo entre as partes no que diz com os danos civis. Em casos tais, há plena incidência das disposições gerais da legislação processual penal (art. 291, caput, do CTB), mormente em virtude da natureza afiançável do art. 303, fiança essa passível de ser arbitrada pela autoridade policial (art. 322 do CPP) — repita-se: quando o autor do evento não preste pronto e integral socorro à vítima.

De qualquer sorte, e ademais dos argumentos apresentados, parece-nos que o inquérito policial propicia melhores condições de colacionar vestígios e elementos que possam dar suporte ao perfeito entendimento do evento acidentes de trânsito do que o simples termo circunstanciado — que não proporciona, no mais das vezes, em casos tais, a devida elucidação do ilícito penal. Imprescindível, em nosso sentir, e como já defendido por outros doutos(4), a atuação imediata da Polícia Judiciária no local dos acontecimentos, coletando todas as informações possíveis, efetuando os levantamentos necessários e formalizando o exame de corpo de delito, com o escopo de viabilizar a elucidação do fato e sua autoria, independentemente da representação da vítima naquele momento, mas sobrestando o andamento do feito policial até que o interesse da vítima seja manifestado — até porque dispõe ela de prazo legal para oferecê-la (parágrafo único do art. 75 da Lei nº 9.099/95 — cuja aplicação a essas hipóteses se dá com fundamento no art. 291, caput, do diploma em estudo — e art. 38 do CPP).

Dessarte, enquanto o legislador não estipular exceção à regra ou não rever, diminuindo a pena máxima cominada ao crime em tela (para que seja lavrado termo circunstanciado desde logo), agirá a autoridade policial, uma vez autorizada a tanto (atenta à previsão do § 4º do art. 5º do CPP), como na apuração do homicídio culposo tipificado no art. 302 do CTB: instaurará o devido e competente inquérito policial.

Notas

(1) Gomes, Luiz Flávio, CTB: Primeiras Notas Interpretativas, in Boletim IBCCRIM 61/04.

(2) Mirabete, Júlio Fabbrini, Crimes de Trânsito Têm Normas Gerais Específicas, in Boletim IBCCRIM 61/13-4.

(3) Muller, Walter Martins & Leon, Altair Ramos, Comentários ao Novo Código de Trânsito Brasileiro, in Boletim IBCCRIM 63/05.

(4) Machado, Bruno Amaral, Termo Circunstanciado e Delitos de Trânsito, in Boletim IBCCRIM 62/07.

Alexandre Meyr
Delegado de polícia em Cunha Porã (SC).



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040