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Boletim - 66 - Maio / 1998





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A inconstitucionalidade do teste de alcoolemia e o novo código de trânsito

André Luis Callegari

Advogado, doutorando em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid e professor de Direito Penal

A proteção da segurança do trânsito exigiu, a partir de seu desenvolvimento nas últimas décadas, a adoção de medidas penais e administrativas tendentes a evitar a realização de condutas que ponham em perigo a segurança das pessoas e bens como conseqüência de uma condução pouco cuidadosa.

Prova de tal fato é a edição do novo Código de Trânsito. Dessa forma, a proteção da segurança no trânsito se consolida como objetivo a perseguir mediante a intervenção penal às condutas criadoras de risco que põem em perigo um bem jurídico e inscrevem-se definitivamente no sistema de delimitação da responsabilidade própria do Código Penal. Assim, a segurança no trânsito recebe dessa forma uma dupla proteção — penal e administrativa — que, como em outras matérias similares, requer uma cuidadosa delimitação dos respectivos âmbitos de atuação, especialmente naquelas zonas que possam resultar limítrofes, tendo em conta que a consideração de um fato como delito leva o escrupuloso respeito ao princípio da culpabilidade e das garantias processuais e constitucionais dos direitos fundamentais.

As considerações preliminares dizem respeito com o aspecto central que trataremos a seguir: a obrigatoriedade do sujeito a realizar o teste de alcoolemia ("bafômetro", exame de sangue). É que um dos elementos do tipo objetivo do novo Código de Trânsito (art. 306, "Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influênica de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem"), apresenta especiais problemas de prova. É que o Código de Trânsito estabeleceu em seu art. 276 a concentração máxima permitida para que o indivíduo não se encontre impedido de dirigir veículo automotor. Porém, em dispositivo que segue (art. 277, CTB), dispôs o legislador que todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização, sob suspeita de haver excedido os limites do art. 276, será submetido a testes de alcoolemia.

A indagação central é se o indivíduo está obrigado a fazer prova contra si mesmo quando detido pela autoridade policial, é dizer, está obrigado a sujeitar-se a um teste realizado no momento do fato, sem qualquer garantia à sua intimidade e pior, sem qualquer contraprova. Poder-se-ia tão-somente argumentar que o dito teste do "bafômetro" é falível, uma vez que toda máquina pode falhar, sujeitando, assim, o ingresso do indivíduo na esfera do injusto penal sem qualquer possibilidade de defesa.

Parece, inicialmente, que a quase coação ao teste de alcoolemia fere princípios constitucionais garantidores dos direitos fundamentais, dentre eles o da presunção da inocência (CF, art. 5º, LVII). Aliás sobre esse tema Antônio Magalhães Gomes Filho adverte que "a garantia constitucional não se revela somente no momento da decisão, como expressão da máxima do in dubio pro reo, mas se impõe igualmente como regra de tratamento do suspeito, indiciado ou acusado, que antes da condenação não pode sofrer qualquer equiparação ao culpado; e, sobretudo, indica a necessidade de se assegurar, no âmbito da justiça criminal, a igualdade do cidadão no confronto com o poder punitivo, através do processo 'justo'."(1)

Na Espanha, o Tribunal Constitucional ao abordar o tema da realização do teste de alcoolemia e a lesão do direito a defesa, afirma que "...a questão que é necessária analisar é se a prática daquele ato de investigação vulnerou algum direito fundamental, supondo a inadmissibilidade das provas obtidas com violação de direitos fundamentais, e se nele se observaram as garantias prescritas pelas disposições legais e regulamentares. Nesse sentido... deve-se colocar o tema de que até que ponto a prova de alcoolemia realizada infringiu o direito à defesa do interessado, questão que há que responder no sentido afirmativo desde o momento em que sequer foi informado pelos agentes policiais das possibilidades... de solicitar a prática de uma segunda medição e análise de sangue, dever que deve se estender derivado do artigo 24.2 da Constituição(2) em hipóteses como o presente, em que os agentes policiais realizam atos de investigação que podem alcançar valor probatório no processo penal, mediante sua aportação mesmo".(3)

A importância da sentença supra diz respeito às questões que nela se abordam. Ainda que a possibilidade de exercício do direito de defesa habitualmente diga respeito ao processo penal e à imputação judicial, resulta evidente que desdobra sua eficácia também no momento da detenção, posto que existem possibilidades de chegar à imputação judicial do delito através da prova colhida na fase policial. Ademais, ainda que em nossa Constituição não conste expressamente que "ninguém está obrigado a declarar contra si mesmo", conforme o princípio constitucional espanhol, parece implícito em nosso princípio da presunção da inocência (CF, art. 5º, LVII) que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo.

Para García Arán, a menção ao direito fundamental e a manifestação do direito à defesa são os aspectos fundamentais da problemática colocada pela prova de alcoolemia que incide em sua mesma consideração como adequada ou não aos princípios constitucionais. Adianta que nesse ponto a maior dificuldade radica no que constitui um dos maiores problemas do Direito Penal democrático: o equilíbrio entre a eficaz prevenção dos delitos e o escrupuloso respeito às garantias constitucionais, especialmente difícil nesse caso por tratar-se de prevenir condutas que afetam ou podem afetar a segurança da prática de todos os cidadãos(4).

Diante dessas considerações, cabe analisar se no momento em que o agente é detido e os policiais requerem que este se submeta à prova de alcoolemia através do "bafômetro" ou do exame de sangue, já seria possível o exercício ao direito de defesa, mesmo que ainda não ocorra a imputação formal de um delito.

García Arán adverte que se de tais diligências podem derivar-se conclusões utilizáveis contra o sujeito em um processo penal, pode entender-se em princípio, que se encontra no âmbito de eficácia do art. 24.2 da Constituição Espanhola e seu inciso relativo ao direito de não declarar(5). Nesse sentido, entendemos que a nossa Carta Política, de modo implícito, garante tal direito através da presunção de inocência inscrito no art. 5º, LVII.

Vásquez Sotelo coloca como caráter geral para todas as provas que supõem intervenção no corpo do acusado e com caráter particular para a prova de alcoolemia, referindo-se ao "direito de não colaborar" como o que resume as expressões "direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado"(6).

Diante desses argumentos, indaga-se se a negativa do agente em realizar a prova de alcoolemia no momento em que é detido poderia resultar em sua incriminação. É que parece sustentável que qualquer gênero de coação suporia uma violação expressa ao direito fundamental à defesa e inclusive, em alguns casos, poderia tipificar um delito de coação praticado pela própria autoridade. Saliente-se que a obrigatoriedade ao exame tanto no sopro de ar como a retirada de sangue, ferem o direito de liberdade do sujeito e realizados mediante força ou ameaça, podem tipificar delitos próprios. Ainda que o novo código mencione que o sujeito será submetido aos referidos testes estes não podem ser obrigatórios, a não ser a realização de um exame clínico no momento da detenção.

Ademais, existe outro argumento de caráter material que, em nossa opinião, avaliza uma interpretação ampla da presunção de inocência inscrita na Carta Política. Admitimos a adoção pelo novo código de excepcionais medidas preventivas para a proteção e segurança no trânsito e para que se evite delitos, assim como se admite a configuração do art. 306, CTB, como delito de perigo concreto, o que já demonstra um pensamento moderno do legislador. Porém, tudo isso supõe adiantar consideravelmente as barreiras de proteção penal e intervir penalmente muito antes do que ocorre em outros âmbitos delitivos. Não se pode olvidar, por outra parte, que a segurança no trânsito conta também com a proteção administrativa nas quais se incluem sanções de suficiente gravidade e executividade.

Assim, aceitando-se essa excepcional proteção penal e essas medidas de averiguação dos indícios do delito, deve-se aceitar também a extensão e vigência das garantias constitucionais: se existe delito ainda que se crie um risco concreto ao bem jurídico e podendo se exercer um controle preventivo para buscar os indícios do delito, deve-se conceder também os direitos daquele a que se imputa formalmente um fato típico. Essa interpretação parece consentânea com os direitos e garantias fundamentais do cidadão, garantidos pela Carta Magna.

Para García Arán, em princípio, não são de utilidade as considerações recentemente formuladas acerta do adiantamento da intervenção penal que se produz nesta matéria e a necessidade de tratá-la com as mesmas garantias que se defende para qualquer outra situação em que exista suspeita de delito. Mas é que, ademais, o que não cabe negar é que, em todo caso, a atuação do afetado ao submeter-se à prova é algo que pode supor uma autoincriminação, é dizer, se não é uma declaração, é uma conduta de resposta ao requerimento da autoridade que tem os mesmos efeitos que a declaração, senão mais graves por assentar-se seus resultados na objetividade de uma prova científica(7).

O sentido do direito a não declarar como manifestação do direito à defesa se assenta na obrigação para o Estado de suportar a carga da prova da culpabilidade daquele que se presume inocente. Este tem direito a não colaborar no descobrimento de sua culpabilidade, como compensação da maior debilidade de sua posição. Por isso se fala de um genérico direito a não colaborar, e nesta linha devemos ter presente que os meios que dispõe o Estado para a investigação dos delitos se aperfeiçoam — e podem seguir se aperfeiçoando — incluindo muitas possibilidades que a simples declaração verbal do imputado(8).

Destarte, parece que o condutor tem o direito a negar-se a colaborar no momento em que é submetido a uma investigação como a do teste de alcoolemia, podendo ocorrer, em contrapartida, as conseqüências que podem derivar de tal negativa, é dizer, no momento de apreciação judicial da prova e da íntima convicção, poderá o juiz servir-se de tal negativa e formular sua decisão. Esse é um ponto importante da questão: em toda matéria que se reconhece a "voluntariedade" do imputado ou do processado na hora de colaborar com o Estado no desenvolvimento de qualquer diligência, não cabe dúvida que esse consentimento pode voltar-se contra ele.

Sempre que se estabelece uma relação entre Estado e cidadão que afeta a ordem penal, especialmente quando se trata de diligências policiais (registros, declarações, investigações em geral), o consentimento do indivíduo não opera com esquemas próprios do Direito privado, simplesmente porque as partes não se encontram em um plano de igualdade(9).

Por isso, o direito a não colaborar que consagra a Constituição da Espanha, e que se aproxima às nossas garantias constitucionais (CF, art. 5º, LVII), com todas as matizes que se formulem, deve-se analisar fugindo das abstrações distantes da realidade, é dizer, o detido tem direito a não realizar o exame, posto que é ao Estado a quem corresponde a prova de sua culpabilidade(10), mas é possível que todas suas negativas, ainda que se assentem em direitos fundamentais, possam ser valoradas de forma que o prejudiquem. Talvez não expressamente, mas sim integrando outros dados que o julgador utiliza para formar sua íntima convicção. A maior ou menor colaboração do detido forma parte da estratégia defensiva, porém, poderão também repercutir contra ele no momento do processo judicial, dependendo do cotejo de outras provas carreadas ao processo.

Nesse tópico, o silêncio constitui uma possível estratégia defensiva do imputado ou de quem possa sê-lo, ou pode garantir a futura eleição de dita estratégia. Enquanto que no velho processo penal inquisitivo "regido pelo sistema da prova taxada, o imputado era considerado como objeto do processo penal, buscando-se com sua declaração, inclusive mediante o emprego de tortura, a confissão das acusações que lhe imputavam, no processo penal acusatório o acusado já não é objeto do processo penal, senão sujeito do mesmo, isto é, parte processual e de tal modo que declaração, ao invés que meio de prova ou ato de investigação, é e deve ser assumida essencialmente como uma manifestação ou um meio idôneo de defesa. Enquanto tal, deve reconhecer-se a necessária liberdade nas declarações que ofereça e emita, tanto no relativo à sua decisão de proporcionar a mesma declaração, como no referido ao conteúdo de suas manifestações. Assim pois, os direitos a não declarar contra si mesmo e a não declarar-se culpado (...) são garantias ou direitos instrumentais do genérico direito de defesa, ao que prestam cobertura em uma manifestação passiva, isto é, a que se exerce precisamente com a inatividade do sujeito sobre o que recai ou pode recair uma acusação, quem, em conseqüência, pode optar por defender-se no processo na forma que estime mais conveniente para seus interesses, sem que em nenhum caso possa ser forçado ou induzido, sobre constrição ou compulsão alguma a declarar contra si mesmo ou a confessar-se culpado"(11).

Nessa linha de argumentação são as lições do professor Gomes Filho, quando ensina que a aplicação de modernas técnicas científicas ao terreno da prova, também suscita uma problemática que tem relação com a matéria examinada nos tópicos anteriores: trata-se da admissibilidade de intervenções corporais no acusado, com o objetivo de obter material para exames laboratoriais destinados a fornecer dados probatórios; o tema é sugerido há algum tempo pelos testes alcoométricos e mais recentemente, pelos exames de DNA(12).

Porém, adverte Gomes Filho que o que se deve contestar em relação a essas intervenções, ainda que mínimas, é a violação ao direito à não-incriminação e à liberdade pessoal, pois se ninguém pode ser obrigado a declarar-se culpado, também deve ter assegurado o seu direito a não fornecer provas incriminadoras contra si mesmo. O direito à prova não vai ao ponto de conferir a uma das partes no processo prerrogativas sobre o próprio corpo e a liberdade de escolha da outra. Em matéria civil, a questão tem sido resolvida segundo a regra da divisão do ônus da prova, mas no âmbito criminal, diante da presunção de inocência, não se pode constranger o acusado ao fornecimento dessas provas, nem de sua negativa inferir a veracidade dos fatos(13).

A crítica que recairá sobre o tema é que em muitas hipóteses em que se suspeite da embriaguez do motorista mas que não existam indícios suficientes da comissão do delito e o afetado se negue a submeter-se à prova, deverá ser absolvido por falta de provas ou talvez nem sequer iniciar-se o processo judicial. Pois bem, essa é uma conseqüência lógica do respeito aos direitos fundamentais em um Estado de Direito; se não existem provas não deve haver condenação. Para García Arán o efeito intimidatório dos controles preventivos não fica diminuído com isso, tendo em conta que, ademais, o argumento contrário não seria defensável, posto que o respeito aos direitos fundamentais é uma barreira infranqueável para a intervenção do Direito Penal(14).

Notas

(1) "Presunção de Inocência e Prisão Cautelar", Saraiva, 1991, p. 37.

(2) Art. 24.2, Constituição Espanhola refere que "Igualmente todos têm direito ao juiz ordinário predeterminado pela lei a defesa e a assistência de advogado, a ser informado da acusação formulada contra eles, a um processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias, a utilizar os meios de prova pertinentes para sua defesa, a não declarar contra si mesmo, a não confessar-se culpados e à presunção de inocência".

(3) TC, Sentencia 100/1985.

(4) García Arán, Mercedes, Conducción de Vehículos Bajo Influencia del Alcohol, "Revista Jurídica de Catalunya", Barcelona, 1987, Any LXXXVI, nº 3, p. 632.

(5) Ob. cit., p. 633.

(6) Citado por García Arán, ob. cit., p. 633.

(7) Ob. cit., p. 639.

(8) Cf. García Arán, ob. cit., p. 639.

(9) Cf. García Arán, ob. cit., p. 641.

(10) Ver Gomes Filho, Antônio Magalhães, "Direito à Prova no Processo Penal", RT, 1977, p. 113.

(11) Trecho da Sentencia nº 00793746, do Tribunal Constitucional da Espanha.

(12) Gomes Filho, Antônio Magalhães, "Direito à Prova no Processo Penal", RT, 1997, p. 118.

(13) Gomes Filho, Antônio Magalhães, ob. cit., p. 119.

(14) Ob. cit., pp. 644/645.

André Luis Callegari
Advogado, doutorando em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid e professor de Direito Penal.



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