INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 95 - Outubro / 2000





 

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Editorial

A abolitio criminis no art. 95 da Lei nº 8.212/91, pela Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000

Luiz Henrique Pinheiro Bittencourt

Advogado

No dia 14 de julho de 2000 foi publicada a Lei nº 9.983, com vacatio legis de 90 dias, prescrevendo em seu art. 3º a revogação dos crimes previstos no art. 95 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, ocorrendo a abolitio criminis(1) das referidas infrações penais. Além disso, acrescentou novos artigos ao texto do Código Penal, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

O Brasil adotou o princípio da obrigatoriedade simultânea da lei, de modo que, salvo disposição em contrário, a lei após a publicação passa a vigorar em todo território nacional(2). Doravante, a publicação de uma lei nova pode fazer cessar a obrigatoriedade de outra lei, quando:

a) a revogue expressamente(3), nos termos do art. 3º, da Lei nº 9.983, em relação ao art. 95 da Lei nº 8.212/91;

b) a revogue tacitamente, sendo com a lei anterior incompatível ou regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (art. 2º, § 1º, última parte).

A questão em tela rege-se pelo art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988 (retroatividade da lei benéfica) e pelo princípio da abolitio criminis, expresso no art. 2º, caput, do Código Penal, in verbis:

"Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória".

Ocorre abolitio criminis quando uma lei posterior deixe de considerar como infração um fato que era anteriormente punido. É a abolitio criminis, hipótese do art. 2º, caput, do CP: a lei nova retira do campo da ilicitude penal a conduta precedentemente incriminadora(4).

A lex mitior, porque mais benéfica (in mellius), sempre projeta seus efeitos para o passado, retroagindo para alcançar fatos que por ela deixaram de ser (abolitio criminis) ou para reduzir pena por ela abrandada ou conceder benefício por ela introduzido(5).

No tocante ao período de vacatio legis, há certa controvérsia na doutrina e na jurisprudência quanto à possibilidade da aplicação de norma benéfica antes de sua entrada em vigor. Uns exigem sua vigência(6), para outros a lei nova em período de vacatio deve ser aplicada desde logo se mais favorável (TARS, mv, RT 667/330)(7). Preferimos esta corrente por razões de política criminal, aplicandose os institutos da economia processual(8) e do favor rei(9), dentre outros, não havendo razões para aguardar-se o momento da entrada em vigor da lei revogadora, para só então aplicá-la.

Ademais, a visão instrumental do processo, com repúdio ao seu exame exclusivamente pelo âmbito interno, constitui abertura do sistema para a infiltração dos valores tutelados na ordem político-constitucional e jurídico-material(10), de modo a ser desnecessária a manutenção do processo em face da lex mitior posterior.

A Lei nº 9.983/00, revogou, como mencionado, os crimes do art. 95, da Lei nº 8.212/91, no entanto, criou tipos assemelhados. Só a título de exemplo, em seu art. 168-A, § 1º, I, refere-se a um tipo penal quiçá parecido ao revogado art. 95, "d", da Lei nº 8.212/91, a apropriação indébita previdenciária, ipsis litteris:

"§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à Previdência Social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público".

Já o art. 95, "d", da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, tipificava como crime a seguinte conduta, in verbis:

"Deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público".

Caso não houvesse a revogação expressa do tipo penal pela Lei nº 9.983/00, haveria a tácita, pois na comparação dos referidos dispositivos chegaremos à conclusão da abolitio criminis, por serem, objetivamente, incompatíveis entre si o art. 168-A, § 1º, I e o art. 95, "d", da Lei nº 8.212/91, pois veja:

1 - O dispositivo revogado falava em Seguridade Social, que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistêncial social(11). A lei revogadora menciona Previdência Social, que é a técnica de proteção social que visa a propiciar os meios indispensáveis à subsistência da pessoa humana, quando esta não pode obtê-los ou não é socialmente desejável que os aufira pessoalmente através do trabalho, por motivo de maternidade, nascimento, incapacidade, invalidez, desemprego, prisão, idade avançada, tempo de serviço ou morte, mediante contribuição compulsória distinta, proveniente da sociedade e de cada um dos participantes(12);

2 - Ao redirecionar o tipo penal para um enquadramento mais restrito, a nova ordem legal acabou por modificar o âmbito de atuação do ius puniendi, que agora tem outro escopo, qual seja, somente as contribuições ou outras importâncias deixadas de recolher e destinadas à Previdência Social e não mais à saúde ou à assistência social, integrantes da Seguridade Social;

3 - A nova lei tipifica "deixar de recolher no prazo legal", enquanto que a revogada mencionava "deixar de recolher na época própria". Este elemento normativo deixava margem à dúvidas quanto à norma que deveria estipular qual seria a época do recolhimento, poderia ser uma lei, um regulamento, uma portaria, etc. A Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000, ao falar "no prazo legal" aplicou técnica mais apurada, deixando claro que somente a lei pode estipular o prazo para o recolhimento das contribuições;

4 - A lei revogadora refere-se a contribuição descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público. A lei revogada mencionava contribuição à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público. Vê-se que a lei nova acrescentou as contribuições descontadas de pagamentos efetuados a terceiros, o que não existia no texto anteior;

5 - Por fim, a lei revogada trata de contribuição devida, a revogadora diz destinada, não mais importando se é devida ou não, basta ser destinada à Previdência Social. A nova lei trouxe mais abrangência ao texto anterior.

Concluindo, a Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000, revogou expressamente o art. 95, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Outrossim, necessário se faz a aplicação da abolitio criminis, contido no art. 2º do Código Penal, declarando-se a extinção da punibilidade, nos termos do art. 107, III, do mesmo Codex.

Ressalte-se que a extinção da punibilidade por abolitio criminis pode ser declarada de ofício pelo magistrado(13), não gerando reincidência.

Notas

(1) HC nº 46.159/SP; ACR nº 11.489; HC nº 68.904/SP; HC nº 33.357; REsp. nº 232.050/SP, etc.

(2) MONTEIRO, Washington de Barros. "Curso de Direito Civil", 1º vol., Editora Saraiva, 1997, p. 24.

(3) Art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.

(4) JESUS, Damásio E. de. "Direito Penal - Parte Geral", 23ª ed., Editora Saraiva, 1999, p. 76.

(5) PEDROSO, Fernando de Almeida. "Direito Penal", Editora Leud, 1993, p. 15.

(6) JESUS, Damásio E. de. "Direito Penal - Parte Geral", 23ª ed., Editora Saraiva, 1999, p. 75.

(7) DELMANTO, Celso. "Código Penal Comentado", 4ª ed., Editora Renovar, 1998, p. 8.

(8) MIRABETE, Julio Fabbrini. "Processo Penal",  Editora Atlas, 1998, p. 49.

(9) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. "Processo Penal", Editora Saraiva, 1994, p. 70.

(10) DINAMARCO, Cândido Rangel. "A Instrumentalidade do Processo", 6ª ed., Editora Malheiros, 1998, p. 311.

(11) SILVA, José Afonso da. "Curso de Direito Constitucional Positivo", 10ª ed., Editora Malheiros, 1994, p. 761.

(12) MARTINEZ, Wladimir Novaes - citado por Sergio Pinto Martins em seu "Direito da Seguridade Social", 9ª ed., Editora Atlas, 1998, p. 269.

(13) Vide art. 61 do Código de Processo Penal.

Luiz Henrique Pinheiro Bittencourt

Advogado.



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