INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 60 - Novembro / 1997





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo, Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A inconstitucionalidade do regime integral fechado à luz do princípio da igualdade

Fábio Henrique Prado de Toledo

Procurador do estado em Ribeirão Preto, SP e professor da Unip, campus de Ribeirão Preto

É cediço o embate que se travou acerca da inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei Federal nº 8.072/90, que impõe o cumprimento da pena em regime integral fechado para os crimes hediondos e os delitos a esses equiparados. Assim é que insurgiram muitas vozes contra a iniqüidade desse dispositivo que impede o abrandamento paulatino dos rigores do encarceramento. Argumentou-se ainda que à própria sociedade não interessa o retorno abrupto do condenado, sem passar por fases progressivas de ressocialização.

E os argumentos que pendiam para a não aplicabilidade do regime integral fechado não se limitaram a ressaltar a sua iniqüidade. Mais que isso, vislumbraram uma manifesta incompatibilidade entre o mencionado dispositivo e o inc. XLVI do art. 5º da Constituição Federal. É que a individualização da pena há de ser assegurada em três momentos distintos, a saber: 1. cominação pelo legislador; 2. fixação pelo juiz; 3. execução.

A inconstitucionalidade da imposição do regime integral fechado estaria, pois, em afastar a possibilidade de individualizar a pena no terceiro momento considerado, ou seja, quando de seu cumprimento.

Embora nos filiemos à corrente que pende para a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei Federal nº 8.072/90, o fato é que o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido da constitucionalidade da norma, amparada que estaria no próprio inc. XLIII do art. 5º da Lei Maior. Nesse sentido: HC 69.603-1, Rel. Min. Paulo Brossard; HC 69.657-1, Rel. Min. Francisco Rezek, DJU de 18.06.93, p. 12.111; HC 69.900-6, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 06.08.93, p. 14.903; HC 70.467-1, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 03.09.93, p. 17.744.

Porém, com o advento da Lei Federal nº 9.455, de 07.04.97, que define os crimes de tortura, a questão do cumprimento da pena em regime integral fechado há de ser analisada sob um novo enfoque.

Mesmo antes de o legislador tornar típica a tortura, essa figura penal já fora equiparada a crime hediondo, inclusive sendo-lhe vedada além da fiança, graça e anistia (inc. XLIII do art. 5º da CF), também os gravames que o legislador ordinário houve por bem acrescer ao texto constitucional, quais sejam, a liberdade provisória (art. 2º, II, da Lei Federal nº 8.072/90) e a progressão prisional (§ 1º do art. 2º da Lei Federal nº 8.072/90).

Ao tipificar o crime de tortura, porém, a Lei Federal nº 9.455/97 trouxe também disposições acerca do regime de cumprimento da pena que, a nosso ver, está em absoluta consonância com o texto constitucional. Dispõe o § 7º do art. 1º da Lei de Tortura: "O condenado por crime previsto nesta lei, salvo na hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado". Assim o fazendo, o legislador encontrou um perfeito equilíbrio entre a exigência de maior rigor para esse delito (inc. XLIII do art. 5º da CF) e o princípio da individualização da pena que, como já dito, há de ser assegurado também quando de sua execução (inc. XLVI do art. 5º da CF).

Pois bem, mas se é inequívoco que quanto ao crime de tortura está assegurado o direito à progressão prisional, na medida em que a lei utiliza a expressão iniciará o cumprimento da pena em regime fechado, resta a indagação acerca das implicações dessa disposição legal sobre os outros crimes que a norma constitucional, de forma igualitária, exige tratamento penal mais rigoroso, quais sejam, os crimes hediondos e o tráfico ilícito de entorpecentes.

Constitui preceito basilar de hermenêutica que ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio. Resta perquirir, pois, se existe aqui uma mesma razão fundamental, a fim de que prevaleça a mesma regra de direito(1). Qual seria, pois, a mesma razão fundamental que permitiria a conclusão de que o § 7º do art. 1º da Lei Federal nº 9.455/97 aplica-se também ao tráfico ilícito de entorpecentes e aos crimes hediondos?

A resposta está no próprio texto constitucional que insere essas figuras penais (tortura, tráfico de entorpecentes e crimes hediondos) num mesmo contexto jurídico. Assim, é a própria Constituição Federal que equipara esses crimes de modo a exigir do legislador ordinário tratamento isonômico. Portanto, é na própria Lei Maior que encontramos a mesma razão fundamental (ubi eadem ratio) tendente a estender a abrangência da norma (ibi eadem dispositio).

A aplicabilidade do § 7º do art. 1º da Lei de Tortura também aos crimes hediondos e tráfico ilícito de entorpecentes decorre do princípio constitucional da igualdade. Como se sabe, esse princípio tem como destinatário principal o legislador ordinário. Essa é a lição de Francisco Campos: "Assim, não poderá subsistir qualquer dúvida quanto ao destinatário da cláusula constitucional da igualdade perante a lei. O seu destinatário é, precisamente, o legislador e, em conseqüência, a legislação; por mais discricionários que possam ser os critérios da política legislativa, encontra no princípio da igualdade a primeira e mais fundamental de suas limitações"(2).

Celso Antônio Bandeira de Melo, com a clareza que lhe é peculiar, doutrina que situações desiguais devem ser tratadas de forma desigual. Elenca, porém, quatro elementos para que seja legítimo o tratamento diferenciado pelo legislador:

"a) que a desequiparação não atinja, de modo atual e absoluto, um só indivíduo;

b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferenciados;

c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;

d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa — ao lume do texto constitucional — para o bem público"(3).

Centremos nossas considerações nesse último elemento. Há um interesse constitucionalmente protegido de molde a possibilitar um tratamento diferenciado entre os autores de crime de tortura (passível de progressão prisional) e os sujeitos ativos de delitos considerados hediondos ou tráfico ilícito de entorpecentes?

Ora, o que ocorre é exatamente o inverso. Dispõe o inc. XLIII do art. 5º da Constituição Federal: "A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem". Assim, há um fundamento constitucional para tratamento diferenciado (mais rigoroso) dos autores desses crimes em relação aos demais. Entre eles, porém, nada justifica o discrimen legal, ao contrário, a norma constitucional é expressa em exigir do legislador ordinário um tratamento isonômico.

Portanto, o legislador ordinário não está autorizado, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade, a dispensar tratamento diferenciado à execução da pena por crime de tortura que não seja também extensível aos crimes hediondos bem como ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. E assim sendo, o § 7º do art. 1º da Lei Federal nº 9.455/97, não é aplicável somente ao crime de tortura, carecendo de interpretação extensiva de modo a açambarcar todos os crimes previstos pela Lei Federal nº 8.072/90.

Portanto, o § 7º do art. 1º da Lei Federal nº 9.455/97 revogou em parte o § 1º do art. 2º da Lei Federal nº 8.072/90, de tal sorte que os condenados por crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, bem como os considerados hediondos, iniciarão o cumprimento em regime fechado, porém, com o direito à progressão prisional.

Notas

(1) Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos S/A, 1961, p. 304.

(2) Apud Bandeira de Melo, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, São Paulo, Malheiros Editores, 1993, p. 10.

(3) Id. ibid., p. 41.

Fábio Henrique Prado de Toledo
Procurador do estado em Ribeirão Preto, SP e professor da Unip, campus de Ribeirão Preto.



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