INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 59 - Outubro / 1997





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo, Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A Lei nº 9.437/97 está em vigor ?

William Terra de Oliveira

Promotor de justiça em São Paulo e doutorando pela Universidade de Madrid

A nova Lei de Armas foi sem dúvidas uma correta opção político-criminal por parte do legislador, conforme já tivemos ocasião de salientar (Boletim do IBCCRIM, n.º 55/6 e 7), pois a violência tanto urbana como rural é, segundo as últimas estimativas da ONU, potencializada pela posse e utilização indiscriminada e descontrolada de armas de fogo. Basta conferir as notícias diárias sobre o assunto...

Ocorre que, conforme advertimos, a Lei nº 9.437/97 possui algumas imperfeições que podem comprometer sua real aplicabilidade, impedindo o alcance de seus objetivos preventivos.

Um dos graves defeitos da lei, conforme dissemos, foi atribuir ao Executivo a possibilidade de, segundo seu "critério", alterar a data em que a lei entraria em vigor (conforme dispõe o art. 5º caput). Na prática isso equivale a permitir, pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico, que o Executivo tenha poderes para alterar a vacatio legis de uma lei. Não tardou muito, e as conseqüências desta esquizofrênica função foram sentidas.

No dia 21 de agosto de 1997, dia em que terminaria o prazo assinalado pelo art. 5º, a lei deveria entrar em vigor. Diz o artigo: "Art. 5º - O proprietário, possuidor ou detentor de arma de fogo tem o prazo de seis meses, prorrogável por igual período, a critério do Poder Executivo, a partir da data da promulgação desta Lei, para promover o registro da arma de fogo ainda não registrada ou que teve a propriedade transferida, ficando dispensado de comprovar a sua origem, mediante requerimento na conformidade do regulamento."

Assim, o possuidor de arma de fogo teria 6 meses para registrar sua arma ilegal. Porém esse registro tornou-se materialmente impossível em razão de que o SINARM não estava ainda estruturado, vindo a ter conformação legal pela edição do Decreto n.º 2222/97, de 8 de maio de 1997, que passou a regulamentar a Lei nº 9.437/97. O regulamento veio cerca de três meses depois da lei nova.

No dia 21 de agosto de 1997, o sr. Ministro da Justiça através de sua Assessoria de Comunicação Social, emitiu um aviso de que "o prazo dado na lei passou a ser contado a partir da publicação do Decreto, porque leis que necessitam ser regulamentadas não são exeqüíveis imediatamente e sim após a sua regulamentação" (Ass. Com. Social – 21/08/97).

A maioria dos Estados da Federação seguiu a orientação do Ministério da Justiça, com exceção de São Paulo, que defendeu a idéia de que a lei está em vigor à partir do dia 21 de agosto de 1997 (posição da SSP).

Isso gerou uma séria polêmica, que tem como pano de fundo a prisão de muitas pessoas já com base na lei nova.

Pergunta-se: Tais prisões seriam legais?

A resposta não é simples. Acreditamos que para a interpretação do problema influem os seguintes fatores:

1) Tecnicamente parece correta a posição de que a lei está em vigor. Isso decorre do Princípio da Legalidade e da Hierarquia, fundados na "verticalidade fundamentadora" do sistema jurídico (ver Kelsen – Teoria Pura do Direito), para o qual um aviso ministerial ou regulamento, não podem alterar a vacatio de uma lei. O erro mais grave foi permitir, através do fenômeno da "Delegação Autorizadora de Funções Típicas" que o Poder Executivo tivesse a faculdade de alterar o lapso temporal reservado ao conhecimento da lei e ao cumprimento de determinadas obrigações (que no caso excluiriam a culpabilidade daqueles que viessem a registrar armas ilegais, por presumir a sua "boa fé " conforme o parágrafo único do art. 5º). O segundo erro foi por parte do Poder Executivo central, que deixou de emitir a única "norma" capaz de alterar a vacatio: um decreto específico. Assim, diante deste vácuo normativo, prevalece a lei, que é clara em seus termos.

2) A outra posição está fundada em aspectos pragmáticos. Uma vez que o SINARM não possuía corpo, e que o regulamento não existia, tornou-se impossível, materialmente, que as pessoas cumprissem a obrigação estampada na lei, até o dia 08.05.97 (dia do Decreto n.º 2.222/97). Assim, para esta posição a norma possui feições de norma penal em branco e depende do regulamento. Isso é correto, porém em Direito Penal nada se presume. Os prazos devem ser claros, e se a lei fala em "prorrogação" está exigindo um ato formal que cumpra tal finalidade. Não basta "presumir" , ainda que por boa exegese, que o lapso de vacatio fica "automaticamente" alterado pela simples edição do regulamento.

3) Assim, foram criadas difíceis situações: a) a lei nova cria crimes novos (note-se por exemplo o art. 10, § 1º , I e II — crime culposo e utilização de arma de brinquedo — e os tipos do § 3º); b) Foram aumentadas (qualitativa e quantitativamente) as penas de outras figuras que anteriormente eram ilícitos menos graves (por exemplo o porte ilegal).

Como conseqüência, muitos falam em "ilegalidade da prisão e rejeição da denúncia". Cremos que é preciso distinguir: se os fatos já eram ilícitos penais, impossível será a rejeição da denúncia porque já existe um fato antijurídico (independentemente da interpretação legal que seja dado ao mesmo, tarefa que compete ao magistrado "quando da narrativa extrai o Direito"). Porém, se estamos diante de fatos novos, agora guindados à condição de ilícitos, surge o grande problema: Estaria a lei nova em vigor?

Como dissemos, para nosso entendimento, tecnicamente sim. Perdemos o momento de alterar a vacatio na forma preconizada pelo nosso sistema jurídico. A lei nova tem aplicabilidade formal.

Porém é preciso ter certos cuidados, pois a questão é mais profunda do que aparenta. A problemática é sem dúvida bastante séria, pois estamos falando da liberdade de muitas pessoas. Antes de uma questão jurídica, temos uma questão de justiça. Uma análise mais profunda revela que antes de uma polêmica sobre nosso sistema legal, temos um problema a resolver: "O que fazer com o estado de prisão dessas pessoas que foram detidas, somente em São Paulo, por uma interpretação impecável em termos técnicos?"

Na verdade, estamos diante de um problema que invoca questões basilares do sistema jurídico, inclusive constitucionais. Lembramos que a lei é federal. Portanto é impossível que tenha vigência apenas um Estado da Federação. Isso é medianamente compreensível se consideramos sua natureza penal. Porém não seria por este argumento que chegaríamos à uma resposta a esta questão aparentemente aporética .

Na realidade, existem pessoas presas em São Paulo por determinadas condutas, e soltas em Estados vizinhos. Assim, estamos falando do embate entre dois grandes princípios: o Princípio da Legalidade, e o Princípio da Igualdade. Uma vez que o desenrolar da situação propiciou, por atuação (ou omissão) do Estado, uma situação menos grave para a maioria da população, em detrimento até mesmo do que, segundo nosso entendimento, determinava a lei nova, entendo que a solução deva ser a que venha espelhar maior justiça.

É curioso notar que raras vezes isso ocorre: a Legalidade cedendo passagem para a Igualdade.

E deve ser assim, pois o Princípio da Legalidade serve ao Princípio da Igualdade. A legalidade vem para garantir a igualdade, e não o contrário (foi assim historicamente — basta analisar a Revolução Francesa) .

Portanto, ainda que de forma valente e impecável em termos jurídicos o Estado de São Paulo tenha entendido manter a Legalidade, base de todo sistema penal, diante do "problema social e pragmático" que foi criado, e com base no espírito federativo que impera por ordem constitucional, a solução mais aproximada de uma justiça fundada na eqüidade é admitir que a lei deva ser exigível somente após o regulamento. A lei é, desta forma, materialmente inaplicável.

Existe uma possibilidade de que esta seja a interpretação emergente dos Tribunais Superiores, quando a questão evoluir dentro do sistema de distribuição de justiça.

Lamentavelmente sou forçado a reconhecer a necessidade de dobrar a Legalidade em favor da estatura que possui o Princípio da Igualdade.

Certamente a maioria dos juristas e operadores no Direito estão neste momento também lamentando a falta de cuidado por parte dos Poderes envolvidos na regulamentação desta relevante questão. Espero que isso não contribua para ofuscar o brilho da lei nova, que pode ser melhorada, e é inquestionavelmente necessária.

William Terra de Oliveira
Promotor de justiça em São Paulo e doutorando pela Universidade de Madrid.



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