INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 58 - Setembro / 1997





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo, Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A fixação do regime inicial da pena e a reincidência

Alberto Zacharias Toron

Advogado, professor de Direito Penal da PUC-SP, mestre em Direito Penal pela USP e ex-presidente do IBCCRIM

A fixação do regime inicial do cumprimento de pena foi um dos temas que mereceu especial atenção do legislador na reforma penal de 84. Tanto que no art. 59, inc. III, exige-se que o juiz o fixe na sentença. A importância de tal determinação está em que o regime de pena atinge diretamente a liberdade do sentenciado, ainda que se possa dizê-la relativa. Daí por que Alberto Silva Franco, no consagrado Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, anota um julgado do Supremo Tribunal Federal no qual se retrata um caso em que o acórdão de um tribunal estadual deixou de se pronunciar sobre o regime inicial a ser observado no cumprimento da pena e, em conseqüência, determinou-se o prosseguimento do julgamento na instância a quo para que se suprisse a omissão (cf. na ob. cit., ed. RT, 5ª ed., p. 405). Mais do que isso, a abstração dos comandos legais nessa matéria pode ensejar constrangimento ilegal sanável pela via do habeas-corpus (RTs 692/273, Rel. Des. Luiz Betanho, e 700/398, Rel. Min. Anselmo Santiago).

Na sistemática legal vigente, o regime aberto só pode ser concedido desde logo ao condenado "não reincidente", cuja pena não exceda a quatro anos (art. 33, § 2º, letra "c", do Código Penal). Mas há casos em que o antecedente que determinou a perda da primariedade não justifica a imposição de um regime de pena mais rigoroso. Suponha-se que o agente, já condenado anteriormente por crime culposo, tenha emitido duplicata simulada para obter crédito e, descoberto nessa prática, venha a ser condenado. A pena mínima de dois anos de detenção, fatalmente acrescida pela agravante da reincidência em ao menos 1/6, viria para o patamar de dois anos e quatro meses. Nessas circunstâncias, considerada a inviabilidade do sursis, a imposição do regime semi-aberto seria de rigor, pois o delito previsto no art. 172 do CP é apenado com detenção e, assim, torna-se impossível sujeitar-se o infrator ao regime fechado, salvo a hipótese de regressão (RTJ 141/188).

De saída, há um aspecto intrigante. Não se consegue compreender porque em relação à concessão dos regimes aberto e semi-aberto, que falam em "não reincidente", não se excetua, tal como ocorre com o sursis, a anterior condenação por crime culposo. A falha do legislador possibilita o paradoxo de se poder o mais, obtendo-se a suspensão condicional da pena quando se é reincidente em razão de crime culposo, e não o menos, que seria a fruição do regime prisional aberto ou semi-aberto. De outro lado, no caso do exemplo, embora o agente não possa se beneficiar do regime aberto, porque é reincidente, se tivesse praticado um estelionato, crime mais grave, posto que apenado com reclusão, em sendo apenado nos mesmos moldes, isto é, com um acréscimo pela reincidência de 1/6, poderia gozar do sursis a teor do que dispõe o art. 77, I, do Código Penal. Soa iníquo, verdadeiramente extravagante, que a condenação por crime menos grave enseje constrição maior do que a outra (mais grave) que acarretará na suspensão da pena de prisão.

Para se evitarem perplexidades dessa ordem é forçoso, como advertia Bobbio, atentar para que "le norme giuridiche non esistono mai da sole, ma sempre in un contesto di norme, che hanno particolari rapporti tra loro..." (Teoria Dell'Ordinamento Giuridico, Torino, ed. Giappichelli, 1960, p. 3). Nesse sentido, o então juiz Silva Pinto, com extrema sensibilidade, salientou que "o intérprete não deve se ater à letra fria de uma norma insulada, mas analisar o conjunto do sistema para perquirir a real vontade do legislador, a qual, como é cediço, jamais pode contrariar a lógica e os transcendentais princípios que visam a atingir os ideais de justiça calorosa e autêntica" (Jutacrim 86/79). Neste julgado, cujo habeas-corpus foi concedido, discutia-se a possibilidade de alguém que não mais era primário em razão de crime culposo poder apelar em liberdade. Aliás, no final do aresto ficou consignado que "se a nova norma penal é expressa no sentido de que o reincidente em crime culposo tem direito ao sursis, seria absurdo que o agente, nessa situação, fosse obrigado a se recolher à prisão até que a superior instância apreciasse seu recurso" (Jutacrim 86/79).

Outra vertente interpretativa, que também se conjuga com a necessidade de uma interpretação lógico-sistemática, é a que preconiza, de um ponto de vista material, o exame do significado da ocorrência anterior. Em acórdão lapidar da lavra do insigne juiz Márcio Bártoli ficou assentado que "a reincidência não deve ser entendida como sinal revelador de maior culpabilidade, atuando como valor absoluto para a determinação do regime de cumprimento de pena, porque, muitas vezes, o crime anterior nada significa em termos de relevância penal, e pode ter representado apenas um fato episódico na vida do réu, incapaz e insuficiente para revelar qualquer inclinação ou tendência a reiteração obstinada ou ilícitos penais, de modo que a obrigatória indicação da modalidade fechada pode representar uma punição exagerada e, às vezes, desproporcional em relação a conduta ilícita, sendo possível a fixação, em tais casos, do regime aberto para início de cumprimento de pena".

No corpo do aresto vem realçado que "...o dado referente à não-reincidência passou a influenciar o processo de individualização do regime penitenciário, com efeitos de prevenção especial extremamente graves, o que parece um equívoco, porque a tendência do direito penal moderno dirige-se à não-valorização demasiada dessa circunstância, que não está relacionada com a culpabilidade pelo fato penal cometido, o princípio reitor da Parte Geral do Código Penal, mas única e exclusivamente com o sujeito ativo do crime, ao ligá-lo com a rebeldia à condenação anterior e presumir que, diante da prática de novo crime, a resposta penal aplicada não surtiu o efeito desejado; que teria sido insuficiente; ou que, mesmo apenado, teria demonstrado vontade criminosa intensa, etc., conclusões de constitucionalidade questionável, por representar outra punição pelo mesmo crime anterior (proibição do non bis in idem como decorrência do princípio da legalidade).

Em suma, não se pune a conduta típica realizada, mas o seu autor, presumido mais perigoso.

A interpretação desse requisito legal do art. 33 do CP não deve ser simplesmente literal, mecânica e, muito menos, preconceituosa, concebendo-se o reincidente sempre como alguém 'mais culpado', um desajustado que, já punido, desrespeitou a manifestação da Justiça, revelando-se inapto para conviver em sociedade". Por isso, como diz Heleno Fragoso, o legislador poderia ter dado um passo mais largo, que seria considerar facultativo o aumento da pena pela reincidência, à semelhança do que fez o Código Penal Tipo para a América Latina, porque "a reincidência pode não significar coisa alguma. Imagine-se o crime de sedução praticado por quem tenha sido condenado por homicídio culposo" (Lições de Direito Penal, Forense, 13ª edição, 1991, p. 332).

Mais à frente, citando artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 6, ano 2, 1994, p. 117, de autoria da juíza Maria Lúcia Karam, acrescenta "...que a manutenção da reincidência, tanto como circunstância agravante, como para impor o regime prisional fechado, é algo insustentável por ferir o princípio da culpabilidade pelo fato praticado e também as garantias constitucionais da dignidade da pessoa humana e igualdade perante a lei, asseverando: 'Nenhum dos argumentos, que procuram fundamentar o instituto da reincidência, consegue esconder sua irracionalidade, seu comprometimento com o autoritarismo, sua incompatibilidade com princípios inerentes a um Estado de Direito. Tentando dar roupagem mais elaborada a tal fundamentação, à teoria da duplicidade de normas, segundo a qual todo tipo teria duas normas — uma que proíbe a conduta típica e outra que impõe a abstenção de cometer outros delitos no futuro — além de não conseguir esconder seu artificialismo, deixa claro seu parentesco com doutrinas de segurança nacional. Cria-se um segundo bem jurídico, traduzido na mera vontade estatal em um autoritário suposto direito do Estado à obediência, a evidenciar a manifesta inviabilidade de sua convivência com um Estado de Direito. As concepções mais freqüentemente acenadas na tentativa de fundamentação da reincidência, sustentando que condenações anteriores devem ser consideradas como agravantes por se expressar na reiteração delitiva 'uma elevação da intensidade criminosa', 'uma acentuada inimizade com o Direito', 'um desprezo permanente contra os bens jurídicos', a agravar a culpabilidade, trazem em sua adesão à culpabilidade de autor, a pretensão de estabelecer a reprovabilidade não sobre a sua conduta, mas sobre a pessoa do agente, punindo-o pelo que é e não pelo que fez, reduzindo assim, o delito a um sintoma da personalidade e fazendo com que sua repressão caia sobre esta personalidade. Como também tradicional caminho positivista que aponta para uma maior periculosidade do reincidente, estes argumentos que giram em torno do maior grau de culpabilidade, rompem com o princípio da igualdade. A afirmação de periculosidade, além de, em última análise, não passar de uma ficção, implica numa classificação das pessoas, em que se distinguem em 'perigosos' e 'não-perigosos', uns superiores, outros inferiores, a receber distintos tratamentos. E o princípio da igualdade, vinculado à proteção da dignidade da pessoa humana, impede tal distinção, igualmente impedindo regras discriminatórias... Na realidade, os argumentos em que se baseiam as concepções tradicionais, para apontar o maior grau de culpabilidade do reincidente, contradizem as próprias finalidades, que seus defensores costumam atribuir à pena: se como cumprimento de uma pena anterior, se reforçou a motivação contrária à norma, o que se demonstra é tão-somente que aquela pena foi contraproducente e criminalizante, o que torna um paradoxo a insistência na mesma reação punitiva" (RJDTACrim 28/218).

Independentemente do acerto ou desacerto da inserção da reincidência como agravante(1) e circunstância impeditiva dos regimes aberto ou semi-aberto desde o início do cumprimento da pena, é certo que a lei penal não distinguiu a natureza do crime anterior cometido pelo infrator, se doloso ou culposo, quando levou em consideração o regime de pena. No entanto, é de rigor o tratamento diferenciado para a consideração da reincidência como, aliás, se decidiu na apelação criminal nº 1.045.017/8 (TACrim-SP, 2ª Câm., j. 12.06.97, v.u., rel. juiz José Urban). Por fim, vale registrar que o abrandamento das regras do art. 33 do Código Penal ganha corpo, tanto que em caso de reincidência em crime doloso já se permitiu o cumprimento da pena desde o início em regime semi-aberto (RJDTACrim 28/222, rel. juiz Moacir Peres e RJTJSP 122/479, Rel. Des. Ary Belfort).

Nota

(1) Sobre o tema consulta-se o trabalho de David Baigun onde o autor sustenta que "la existencia de una serie de condenas anteriores nada tiene que ver con el acto personal que genera la aplicación del principio de culpabilidad" e acentua que as razões de prevenção invocadas para explicar e justificar o agravamento da pena pela reincidência servem para entendê-la como um mecanismo de coerção estatal, "pero no alcanzan para incorporarla al principio de culpabilidad..." (Culpabilidad y Coerción Estatal, in El Poder Penal del Estado -Homenaje a Hilde Kaufmann, Buenos Aires, ed. Depalma, 1985, pp. 322/323. No mesmo sentido temos o entendimento de Enrique Bacigalupo, "A personalidade e a culpabilidade na medida da pena", Revista de Direito Penal, SP, ed. RT, 1974, nº 15/16, p. 34.

Alberto Zacharias Toron
Advogado, professor de Direito Penal da PUC-SP, mestre em Direito Penal pela USP e ex-presidente do IBCCRIM.



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