Tatiana Viggiani Bicudo, Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal
Ao interpretar o artigo 89 da Lei 9.099/95, boa parte da doutrina tem assinalado que o instituto da suspensão processual apenas mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal e, assim, cria para o Ministério Público uma situação de discricionariedade regrada, não podendo o juiz, em conseqüência, conceder a suspensão ex-officio (Ada Pellegrini e outros em Juizados Especiais Criminais, SP, ed. RT, 1995, p. 210, Pedro Demercian e outro: Juizados Especiais Criminais, SP, Aide, 1996, pp. 49/50 e Afrânio da Silva Jardim: Juizados Especiais Criminais - Lei 9.099/95, Associação Mineira do MP, nº 02, p.72). Em trabalho publicado logo após a vigência do diploma em exame, no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais nº 35 (novembro/1995, "Drogas: novas perspectivas com a Lei nº 9.099/95"), cheguei a sustentar o acerto desta intelecção, alvitrando, para se escapar do draconianismo isolado de um ou outro promotor de justiça, que o magistrado, discordando do posicionamento ministerial em não propor a suspensão, poderia, no máximo, por analogia, invocar o disposto no artigo 28 do CPP e colher o pronunciamento do chefe da instituição.
Sem embargo, este entendimento não tem merecido o aplauso da jurisprudência, principalmente a do E. TACrim-SP, bem como a do Col. TJSP (AC 158.135-3, Rel. Des. Deviene Ferraz), como se lê no corpo deste v. acórdão:
"Com efeito, o réu que preenche os requisitos exigidos pelo artigo 89 e seus parágrafos da Lei nº 9.099/95 tem o direito de requerer a suspensão do processo, mesmo quando o Ministério Público não formula a proposta...
Na hipótese do Ministério Público não efetuar a proposta e o réu não a requerer, o juiz tem o dever de propô-la de ofício, pois se cuida de um direito do réu. Essa obrigação do magistrado decorre do fato de que qualquer direito do réu, em matéria penal, deve ser apreciado pelo Poder Judiciário mesmo na ausência de pedido expresso."
Aliás, pioneiramente, o eminente ministro Vicente Cernicchiaro, em palestra proferida na sede da Apamagis, em evento promovido pelo IBCCRIM, advertia para o fato de que "...Nesse quadrante, não fica a critério do membro do Ministério Público (mais rigoroso ou mais tolerante) propor a suspensão do processo. A suspensão é direito do acusado. Conseqüentemente, obrigação do Ministério Público. Reunidas as condições, impõe-se sugeri-la" (Bol. IBCCRIM nº 36/04).
Nesse mesmo sentido, o preclaro juiz Luis Flávio Gomes, em seu artigo "Sobre a natureza jurídica da proposta do Ministério Público na suspensão condicional do processo (Lei nº 9.099/95, art. 89)", publicado tanto na magnífica coletânea "Doutrina 1", coordenada pelo eminente magistrado James Tubenchlak, quanto na prestigiosa Revista Portuguesa de Ciência Criminal, coordenada pelo eminente professor Figueiredo Dias (abril/junho de 1996), dissertando sobre o caráter de direito público subjetivo do instituto em foco, enfatiza: "...e tudo porque a suspensão é também um processo (despenalizador) de individualização da resposta estatal que leva à extinção da punibilidade. Exatamente porque é via alternativa com esse caráter penal, pode-se falar em direito público subjetivo do acusado, desde que preenchidos todos os seus requisitos legais. E direito público não pode ficar sem amparo judicial. A perda da bilateralidade (explícita) do instituto, como se vê, é sacrifício menor que o de não amparar um direito público subjetivo. O escopo mais profundo da suspensão do processo é concretizar um novo modelo de política criminal, que não pode sucumbir diante de uma recusa não amparada no ordenamento jurídico" (RJ, ed. Instituto de Direito, 1996, p. 146). Não é outro o preciso escólio do professor Damásio de Jesus, para quem o juiz pode agir de ofício se entender cabível a suspensão processual (Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada, SP, ed. Saraiva, 3ª ed., 1996, p. 112).
O assunto, pela sua importância, carecia de um pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça. Assim, num caso de suposta violação ao art. 335 do Código Penal, que atina com "fraude em concorrência", o representante do Ministério Público, mesmo reconhecendo que a reprimenda abstratamente cominada (detenção de seis meses a dois anos ou multa), além da primariedade e ausência de antecedentes dos agentes, autorizavam a proposta da suspensão, deixou de lançá-la em face, resumidamente, da gravidade dos fatos.
O E. TACrim-SP, por sua 16ª Câmara, embora desposando o entendimento de que o instituto em foco representa um direito público subjetivo, não vislumbrou nenhuma ilegalidade no proceder do juiz que se limitou a remeter o feito ao procurador geral da Justiça. Por isso, à unanimidade de votos, denegou o Habeas-Corpus nº 298.404/1.
Com esta decisão abriu-se a possibilidade de o STJ apreciar o tema. E, com efeito, no Habeas-Corpus nº 5.494/SP a matéria foi amplamente discutida e mesmo contra o voto do relator originário, Min. William Patterson, concedeu-se a ordem prestigiando-se a idéia de que o instituto representa mesmo um direito público subjetivo. Dessa forma, não pode ficar sem tutela jurisdicional, cabendo ao juiz em face da inércia ou recusa ministerial, de ofício, conceder o sursis processual quando divisar a presença de seus pressupostos. No plenário da Col. 6ª Turma, o Min. Cernicchiaro, que será o relator designado para o acórdão, protagonizou a longa discussão que se travou com o relator, que acabou ficando isolado.
O acórdão tem a seguinte ementa:
"O artigo 89 da Lei 9.099/95 é de natureza dúplice. Penal quando enseja tratamento mais favorável. Aplicação imediata e incondicional, por força da Carta Política. Processual, no tocante ao procedimento. A suspensão condicional, sendo direito público subjetivo do acusado, gera obrigação de o Ministério Público expor as condições. Em havendo recusa, por entender inexistentes as condições objetivas e subjetivas, o juiz precisa decidir. Inadequado aplicar, analogicamente, o art. 28 do Código de Processo Penal; aqui o objeto é a ação penal. Lá foi iniciada a ação penal. A suspensão do processo é diversa. O juiz, ao receber a proposta, não é mero chancelador: poderá recusá-la, inteira ou parcialmente. Desenvolve juízo de valor, inclusive de oportunidade. O magistrado, assim, deve dar o impulso processual (não substituir o Ministério Público quanto a legitimidade para a ação penal (j. 09.04.97, DJU 19.05.97, seção I)."
Aliás, a decisão majoritária afina-se com a interpretação de nº 13 dada pela Comissão Nacional de reforma do Código de Processo Penal composta pelos ministros Sálvio Figueiredo, Fontes de Alencar, Rosado de Aguiar, desembargadores Weber Martins Batista, Fátima Nancu Andrighi, Sidnei Beneti, juiz Luiz Flávio Gomes e professores Ada Pellegrini Grinover e Rogério Lauria Tucci, quando reunida em Belo Horizonte em 27/10/95.
Para finalizar este tópico, parece que o instituto do sursis processual começa a ganhar uma interpretação similar a da suspensão condicional da pena que, no início, como revela o professor Nilo Batista, encontrou enorme resistência do Judiciário quanto à sua aplicação e, hoje, ninguém contende, é direito público subjetivo e deve ser concedido quando presentes as condições legais (cf. "Alternativas à prisão no Brasil", in Criminologia Crítica, Pará, ed. Cejup, 1990, p. 125 e ss.).
Outra questão que tem gerado alguma controvérsia é a de se saber se o procedimento simplificado previsto pelos artigos 69 e seguintes tem lugar em crimes da competência da Justiça Federal. Não poucos sustentam a impossibilidade de sua aplicação pelo fato de a Constituição Federal não ter previsto no art. 98 a criação dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal e, bem assim, a regra contida no art. 1º da própria Lei 9.099/95 (Pedro Demercian e outro: Juizados Especiais Criminais, ob. cit., p. 30).
O tema, sob este enfoque, não parece bem posto porque se as regras previstas no procedimento simplificado permitem a extinção da punibilidade sem o processo, mediante transação ou composição civil, não parece possível excluir a incidência da lei penal que tem cariz processual, mas conseqüências penais (STF, RT 736/563), do âmbito da Justiça Federal. Primeiramente, porque não há na sistemática constitucional vigente qualquer indicação de que o legislador quisesse romper com a unidade no tratamento penal dispensado a acusados no terreno da Justiça Estadual e no da Federal. Ao contrário, o que se depreende da Constituição é que a competência privativa da União para legislar em matéria penal e processual penal visa a assegurar um tratamento paritário entre os acusados. Depois, como bem observado pela professora Ada Pellegrini Grinover e outros (Juizados Especiais Criminais, ob. cit., p. 95) não é a instalação de juizados especiais que define a possibilidade da aplicação do ritual mais benéfico previsto pela Lei 9.099/95. Tanto assim, que em São Paulo, para citar apenas um exemplo, os juízes das Varas Criminais têm invariavelmente aplicado os institutos da transação e outros.
A propósito, a já citada Comissão Nacional, na sua interpretação à lei em estudo, definiu que "são aplicáveis pelos juízos comuns (estadual e federal), militar e eleitoral, imediata e retroativamente, respeitada a coisa julgada, os institutos penais da Lei 9.099/95, como a composição civil extintiva da punibilidade (art. 74, parágrafo único), transação (arts. 72 e 76), representação (art. 88) e suspensão condicional do processo (art. 89)".
Agora, no Habeas-Corpus nº 96.04.56769, a 1ª Turma do TRF da 4ª Região, em acórdão que terá como relator designado o ilustre juiz Volkmer de Castilho, decidiu-se pela aplicabilidade dos preceitos da Lei 9.099/95, à vista da pena máxima cominada em abstrato (DJ, seção II, 9/4/97).
Alberto Zacharias Toron
Advogado em São Paulo, professor de Direito Penal na PUC-SP e mestre em Direito Penal pela USP.
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