INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 50 - Janeiro / 1997





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo, Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

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Conselho Editorial

Editorial

A prejudicialidade e os crimes tributários

Eduardo Reale Ferrari

Advogado em São Paulo, mestrando pela Faculdade de Direito de Coimbra, professor da PUC-SP e Unip/SP

Há algum tempo venho meditando a respeito da pertinência da certeza do tributo como questão prejudicial à ação penal nos crimes definidos na Lei nº 8.137/90. Não obstante parecer-me clara a impossibilidade de condenar-se alguém enquanto não certeira a dívida tributária, questões de ordem pragmática têm sido levantadas, a tentar solucionar a eventual injustiça de um procedimento criminal instaurado contra certo agente, antes da definição do tributo no âmbito administrativo-fiscal. Duas correntes nesse ponto se contrapõem.

A primeira defende a impossibilidade de instaurar-se qualquer procedimento criminal decorrente de ilícitos fiscais, enquanto pendente a dúvida tributária. Conduzida por alguns juristas de estirpe, tal corrente funda-se no fato de que a denúncia oferecida antes do término do processo fiscal apresenta verdadeira ausência do interesse de agir por parte do Ministério Público, a tornar a ação penal carente. Substantivamente, por outro lado, defendem a tese de que a pendência da questão tributária conduz até mesmo a ausência da afetação ao bem jurídico tutelado pelos crimes fiscais, vez que nem mesmo certa é a existência do tributo, a tornar, a priori, atípica a conduta penal. Já a segunda corrente, por sua vez, entende perfeitamente plausível a instauração do procedimento criminal-fiscal, ainda que questionável a existência ou não do tributo, fundando-se na circunstância da autonomia das disciplinas jurídicas, não reconhecendo o procedimento administrativo como condição de procedibilidade às ações penais.

Apesar da riqueza dos argumentos de ambas as correntes, somos do posicionamento de que as mesmas não se justificam, ao menos de maneira absoluta. Concordando com a primeira corrente, no sentido de que a dívida tributária possui íntima relação com a tipicidade penal-fiscal, parece-nos clara a impossibilidade de alguém ver-se processado quando evidente a inexistência do tributo. Isso não significa, todavia, que a impossibilidade de ver-se processado decorra tão-somente da interposição do recurso no âmbito administrativo, vez que simples questionamento do tributo, com recurso ao Tribunal de Impostos e Taxas, não constitui obstáculo à investigação, pois, a ser assim, o recurso tornar-se-ia perigoso mecanismo protelatório, condutor à prescrição penal. Para além disso, o instrumento recursal não tem qualquer relação à tipicidade objetiva, a ponto de tornar a conduta atípica toda vez que utilizado.

Secundariamente, por outro lado, não abraçamos o posicionamento da segunda corrente ao enunciar a absoluta autonomia das disciplinas jurídicas, a justificar a separação absoluta do procedimento criminal, independente do âmbito administrativo-fiscal. Pragmaticamente, parece-nos que a solução a ser conferida para tormentosa discussão já está presente na nossa atual legislação penal e processual penal, bastando reconhecer-se a dúvida tributária como verdadeira questão prejudicial heterogênea do procedimento criminal-fiscal. Partindo do pressuposto de que a persecução penal instaurada pelo Ministério Público está dependente da certeza do débito tributário, configura-nos possível qualificar o tributo como um antecedente lógico-jurídico da questão penal, objeto do processo criminal-fiscal.

Tal antecedência lógico-jurídica é definida entre os doutrinadores como questão prejudicial, sendo essa para Manzini "questão jurídica cuja solução constitua um pressuposto para a decisão da controvérsia submetida a juízo". A controvérsia, portanto, quanto à existência ou não do tributo, conduz à instauração de uma prejudicial ao mérito da ação penal, cabendo ao julgador, suspender o processo criminal, enquanto não decidida a questão tributária, nos termos do artigo 93 do Código de Processo Penal. Concomitante à suspensão do processo criminal, razoável será a suspensão da prescrição procedimental, nos termos do artigo 116, I, do Código Penal, não fazendo sentido possibilitar-se o andamento da prescrição penal quando presente uma prejudicial. A suspensão da prescrição, nesse aspecto, configura-se como ponto de equilíbrio e justiça à instauração da prejudicial.

Não obstante ter sido outro o posicionamento das dras. Rosier Custódio e Janaina Paschoal, em brilhante artigo publicado no Boletim nº 45 do IBCCRIM, ousamos afirmar que a suspensão da prescrição penal, nestas circunstâncias, não decorre da ineficiência estatal a penalizar o agente, mas se origina da própria provocação ultimada pela parte quando da interposição do recurso. Para além disso, parece-me justo que a existência de um obstáculo legal imposto pelo Estado-Legislação conduza à suspensão da prescrição, porquanto não pode o Estado-Juiz ter contra si a impossibilidade de punir, se o próprio Estado-Legislação enunciou obstáculo legal ao processo. Não faria sentido imporem-se obstáculos legais proibitivos da punição, se, quando cessados, impossível a continuidade da investigação, porquanto ocorrida a prescrição.

A suspensão prescricional significa sustação da perda do poder-dever do Estado em punir, em face do decurso do tempo. O Estado, diante de certos acontecimentos, fica impossibilitado de exercer o ius persequendi e, em razão desses obstáculos, imponderável será a aceitação da prescrição pela não punição. O processo, por conseguinte, não poderá ter seu trâmite normal, restando obstado o seu desenvolvimento. Conseqüência direta da presença de obstáculos será a dilatação do processo, com parada momentânea das ações, a indicar um hiato dos prazos prescricionais e, portanto, necessária sua alteração.

Sem a alteração dos prazos prescricionais, possível se tornaria a impunidade do agente por meio da prescrição, não obstante causas legais impedissem o andamento processual. Não faz sentido, assim, que a lei discipline a paralisação da ação e, ao mesmo tempo, admita a prescrição do procedimento criminal. A paralisação do procedimento criminal, por outro lado, é uma garantia ao próprio acusado, não estando impedida a sustação do processo pela lamentável vedação do § 1, do art. 34, da Lei nº 9.249/95, sendo suficiente, a meu ver, a sustação do processo criminal pendente, por meio da questão prejudicial heterogênea, expressamente disciplinada em nossa legislação processual penal.

Eduardo Reale Ferrari
Advogado em São Paulo, mestrando pela Faculdade de Direito de Coimbra, professor da PUC-SP e Unip/SP.



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