INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 43 - Julho / 1996





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo e Roberto Podval

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A citação editalícia e a eficácia do processo

Rogerio Schietti Machado Cruz

Promotor de Justiça do MPDFT

Publicou-se no DOU de 18.04.96, a Lei nº 9.271, de 17.04.96, que altera os artigos 366, 367, 368, 369 e 370 do Código de Processo Penal, introduzindo diversas inovações no trato das comunicações dos atos processuais, a principal delas, sem dúvidas qualquer, referente à suspensão do processo e do prazo prescricional quando o réu, citado por edital, não comparece ou não constitui advogado, possibilitando, todavia, a produção de provas urgentes e decretação de prisão preventiva (art. 366).

Tal inovação legislativa, de profunda coragem, foi justificada pelo diagnóstico de que a hipótese de citação por edital "... leva à incerteza quanto ao conhecimento, pelo acusado, da acusação a ele imputada, o que pode motivar a alegação posterior, de cerceamento de defesa. Com efeito, os princípios da ampla defesa e do contraditório, adotados no ordenamento jurídico brasileiro, e a previsão da Constituição Federal de que ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LVI) conferem o respaldo legal à nova pretensão do art. 366, ainda mais quando a ela se acrescenta (§1º) a autorização para que se produzam, antecipadamente, as provas consideradas de maior urgência" (Justificação à Mensagem nº 1.269, de 1994, do Poder Executivo).

A despeito do reconhecido avanço e do caráter garantista da lei, algumas preocupações merecem reflexão.

No quotidiano forense, são freqüentes as ações penais que chegam ao seu termo final sem que tenha o acusado efetivamente participado da relação jurídica, confiada, em tais casos, a defensores públicos e advogados dativos, que, amiúde, exercitam mera defesa formal, por carência justamente de informações que somente poderiam ser obtidas através de um contato pessoal com o réu. Impende, não obstante, diferenciar as situações que subjazem ao redor desta questão, e que, portanto, deveriam engendrar distinto tratamento legal.

A primeira delas, talvez a mais freqüente, verifica-se quando o réu, conquanto interrogado durante as investigações preliminares à ação penal, não é localizado para o ato de citação, por motivo de mudança, no endereço fornecido por ocasião de seu interrogatório policial.

Outra hipótese, também muito corriqueira no dia-a-dia do fórum, refere-se à situação em que, desde o início das investigações policiais, não se logrou descobrir o endereço ou o paradeiro do investigado.

Não raras vezes, outrossim, o réu, sabendo que contra ele instaurou-se um processo criminal, deliberadamente foge para não ser alcançado pela Justiça, ou, então, evita, com uso de subterfúgios e com muita astúcia, ser pessoalmente citado, aguardando eventual condenação para, ante a prova de que jamais deixou de residir no endereço onde fora inicialmente procurado, obter, em grau de recurso, revisão criminal, ou mesmo através de habeas-corpus, e com muito provável sucesso, a anulação do processo por vício da citação promovida por edital.

Por último, há a situação menos ocorrente em que o réu, após ser regularmente citado, foge para evitar os efeitos decorrentes da ação penal, ou simplesmente muda de endereço sem informar o fato ao juízo processante.

Mostra-se evidente que, nesta derradeira hipótese, nada mudará com o novel lei, porquanto a citação do réu operou-se por mandado e não por edital, devendo o processo, conseguintemente, seguir à sua revelia.

Afigura-se, por sua vez, razoável a opção legislativa de suspender o curso do processo quando se verifica alguma das duas primeiras situações, nas quais a revelia do réu derivou quer de um mero comportamento desidioso ou comodista – quando muda de endereço e não faz a devida comunicação ao juízo processante – quer de um total desconhecimento de que o Estado o processa criminalmente.

Parece-nos, entretanto, que não se pode dar o mesmo tratamento àquelas situações em que o réu foge ou evita a sua citação pessoa, pois a suspensão do processo até que seja o réu pessoalmente citado premiará a sua astúcia, em prejuízo do interesse estatal e societário de que a conduta ilícita seja devidamente apurada. Em outras palavras, o Estado terá o exercício de sua jurisdição penal sobrestada simplesmente porque o réu, deliberadamente, "driblou" a lei penal, valendo-se de uma alternativa criada pela lei instrumental.

O novo diploma legal não percebeu esta realidade, involuntariamente estimulando, por conseqüência, a fuga e a chicana processual, e gerando, ipso facto, a impunidade daqueles a que a lei não procurou defender (lembremo-nos da justificativa ao projeto de lei, em que se evidencia a intenção de proteger os acusados que não têm conhecimento de que estão sendo processados).

O fato é que, na sistemática ora adotada pela recente lei, será muito mais vantajoso àquele que não confia na sua própria inocência furtar-se à lei, a exemplo do que já ocorre com os réus pronunciados por crimes dolosos contra a vida inafiançáveis, cujo julgamento se condiciona à colaboração do pronunciado em apresentar-se ao juízo da causa, ou à eficiência da polícia em capturar o foragido.

É bem verdade que, ao escopo de evitar-se que a nova sistemática engendre a total ineficácia do futuro provimento jurisdicional, previram-se três alternativas, uma cogente e duas facultativas, a acompanhar a norma principal, i.e., a suspensão do prazo prescricional, a produção de provas urgentes e a decretação da prisão preventiva do réu.

Aparenta, contudo, óbvio que a suspensão do prazo prescricional relativo ao ilícito imputado ao réu não impedirá que, dependendo da duração da suspensão do processo, reste prejudicado o encontro da verdade material, face à dificuldade de se reunirem provas idôneas a lastrear a narrativa constante da peça acusatória, ou mesmo a versão apresentada pelo réu. É evidente que, após alguns anos, será muito pouco provável que as eventuais testemunhas do delito, ou mesmo a vítima, consigam, se ainda estiverem vivas ou se localizadas, recordar-se de um fato tão longínquo no tempo. Logo, estará preservada, apenas, a prova pericial ou documental eventualmente já colhida antes da suspensão do processo, insuficientes, muitas das vezes, para firmar a convicção judicial acerca do fato objeto da ação penal.

Por sua vez, também não será difícil imaginar o nonsense jurídico de uma sentença condenatória prolatada após longos anos de suspensão do processo, quando, então, já terá a reprimenda penal se despido de todo o seu sentido pedagógico, máxime naqueles casos em que o réu demonstrou comportamento social adequado, sem qualquer outro registro criminógeno a caracterizá-lo como merecedor de uma pena "perdida" no tempo.

Certamente será muito mais fácil, doravante, postular e obter o encarceramento cautelar do réu "para assegurar a aplicacão da lei penal" (dada a sua possível ineficácia e inutilidade se aplicada muito tempo depois dos fatos) ou mesmo "por conveniência da instrução criminal" (prejudicada enquanto durar a suspensão do processo). No entanto, não se poderá esquecer que a restrição da liberdade do cidadão é medida excepcional, adotada apenas como ultima ratio, quando presente a necessidade imperiosa da medida (periculum libertatis).

Minimizando os efeitos deletérios dessa suspensão do processo, quer-nos parecer, portanto, conveniente adotar-se um interpretação flexível da expressão "provas urgentes", de tal sorte a que não apenas enquadremos, nesse conceito aquelas provas ditas irrepetíveis, mas também todas as provas que se revelarem passíveis de um enfraquecimento pela ação do tempo, justificando, dessarte, a sua produção ad perpetuam rei memoriam.

Nessa linha de raciocínio, deve qualificar-se como prova urgente também a testemunhal, já que, como ressaltado, o depoimento de uma testemunha ocular, pela sua relevância e pelo risco de que venha a faltar ou fragilizar-se com o tempo, não pode ser transferido para uma data futura e incerta.

São essas algumas das preocupações que nos ocorreu externar acerca de uma das modificações introduzidas pela lei no sistema processual penal pátrio, e que hão de merecer acréscimos ou críticas dos aplicadores do direito, em prol da otimização e credibilidade da Justiça.

Rogerio Schietti Machado Cruz
Promotor de Justiça do MPDFT



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