INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 42 - Junho / 1996





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo e Roberto Podval

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

"A violência presumida no crime de estupro diante do STF"

Marco Aurélio de Mello

Ministro do STF

HC n° 73.662-9/MG

Inicialmente, ressalvo entendimento pessoal sobre a competência para julgar este habeas-corpus, cuja definição, continuo convencido, ocorre consideradas as pessoas envolvidas na hipótese sob exame. O paciente não goza de prerrogativa de foro.

Assim, cabe perquirir a situação daqueles que integram o órgão apontado como coator - o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Os desembargadores estão submetidos à jurisdição direta, nos crimes comuns e de responsabilidade, do Superior Tribunal de Justiça -alínea "a" do inciso I do artigo 105 da Constituição Federal, o que atrai a pertinência do disposto na alínea "c" do referido inciso, segundo a qual compete àquela Corte julgar os habeas-corpus quando o coator ou o paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea "a", ou quando o coator for Ministro de Estado, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral. Todavia, até aqui este não é o entendimento prevalente. O Plenário, ao concluir o julgamento da reclamação n° 314/DF, em que funcionou como relator o Ministro Moreira Alves, assentou que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus, desde que não seja substitutivo de recurso ordinário, Interposto contra ato de tribunal, ainda que não guarde a qualificação de superior. Na oportunidade, fiquei vencido na companhia honrosa dos Ministros lImar Galvão,Carlos Velloso e Celso de Mello, tendo findado o julgamento em 30 de novembro de 1993. Conheço do pedido ora formulado. O tema foi melhor desenvolvido quando verificado o debate junto ao Pleno. Confira-se com o que publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais n° 9, páginas 140 a 146.

No mérito, tem-se que, nos crimes de estupro, o depoimento da vítima exsurge com inegável importância. No caso dos autos, ouvida em Juízo, esclareceu que vinha saindo de motocicleta com o paciente, sempre indo a lugar deserto para troca de beijos e carícias. Apontou que o mesmo já fizera com um dos amigos do Paciente, entre outros rapazes. A seguir, noticiou que o Paciente pedira gentilmente para que mantivesse consigo conjunção carnal, e que se recusara, de início, mas cedera em face às carícias: Retomando à residência, pedira ao paciente que a deixasse longe de casa, visando a fugir fiscalização do genitor, que, por falta de sorte, viu-a descer da motocicleta.

Ao que tudo indica, a ação penal em que condenado o paciente surgiu única e exclusivamente da reação do pai da vítima.

Esta; respondendo a perguntas endereçadas pelo Estado-acusador, foi categórica em afirmar que:

(...) já ficou como outro rapaz de nome V.; que se relacionou sexualmente com o réu por três
vezes e que na última for que seu pai pegou; que a depoente manteve relações sexuais com o réu na primeira vez que o conheceu; que tal relação sexual não foi forçada em hipótese alguma; que assim agiu porque pintou vontade; que o relacionamento da depoente com o pai não é muito bom e que o pai a pressionou para comparecer perante a autoridade; que transou com V. num sítio abandonado perto da fábrica" (folhas 48 e 49).

A seguir, em face de intervenção feita pela assistência da acusação, respondeu a vítima:

"(...) tinha muito medo do pai saber que ela estivesse se encontrando com o réu sexualmente; que não houve violência em momento algum; que a depoente não tem medo de pegar Aids, nem de engravidar porque se tiver um filho o criará" (folha 49).
Soma-se ao depoimento da própria vítima e da testemunha H.A.S., consoante o qual:

"(...) tinha conhecimento de que M: saía junto à menor M.A.N.; que, igualmente ficou sabendo pelo próprio acusado que ambos mantiveram relações sexuais; que a vítima aparentava ter uns 15 ou 16 anos; é do conhecimento do declarante que ela saía com outros; que chegou a ver a menor sair à noite com outras pessoas de moto; que a menor anda muito pela noite ficando até a madrugada na rua e o depoente a considera uma prostitutazinha" (folha 51).

Diante de tais colocações, forçoso é concluir que não se verificou o tipo do artigo 213 do Código Penal, no que preceitua como estupro o ato de "constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça". A pouca idade da vítima não é de molde a afastar o que confessou em Juízo, ou seja, haver mantido relações com o Paciente por livre e espontânea vontade; O quadro revela-se realmente estarrecedor, porquanto se constata que menor, contando, apenas com doze anos, levava vida promíscua, tudo conduzindo à procedência do que articulado pela defesa sobre a aparência de idade superior aos citados doze anos. A presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra; Os meios de comunicação de um modo geral ,e particularmente, a televisão, são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionando sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios, que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pelas dessemelhanças. Assim é que, sendo irrestrito o acesso à mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade, tudo de uma forma espontânea, quase natural.

Tanto não se diria nos idos dos anos 40, época em que exsurgia, glorioso e como símbolo da modernidade e liberalismo, o nosso vetusto, e ainda vigente Código Penal, Aquela altura, uma pessoa que contasse doze anos de idade era de fato considerada criança e, como tal, indefesa e despreparada para os sustos da vida.

Ora, passados mais de cinqüenta anos - e que anos: a meu ver correspondem, na história da humanidade, a algumas dezenas de séculos bem vividos – não se há de igualar, por absolutamente inconcebível, as duas situações. Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze canos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definida a ponto de vislumbrarem toda a sorte de conseqüências que lhes pode advir. Tal lucidez é que de fato só virá com o tempo, ainda que o massacre da massificação da notícia, imposto por uma mídia que se pretende onisciente e muitas vezes sabesse irresponsável diante do papel social que lhe cumpre, leve à precipitação de acontecimentos que só são bem-vindos como o tempo; esse amigo inseparável da sabedoria.

Portanto, é de se ver que já não socorre à sociedade os rigores de um Código ultrapassado, anacrônico e, em, algumas passagens, até descabido, porque não acompanhou a verdadeira revolução comportamental assistida pelos hoje mais idosos. Com certeza, o conceito de liberdade é tão discrepante daquele de outrora que só seria comparado aos que norteavam antigamente a noção de libertinagem, anarquia, cinismo e desfaçatez.

Alfim, cabe uma pergunta que, de tão óbvia, transparece à primeira vista como que desnecessária, conquanto ainda não devidamente respondida: a sociedade envelhece: as leis, não?

Ora, enrijecida a legislação - que, ao invés de obnubilar a evolução dos costumes, deveria acompanhá-la, dessa forma protegendo-a - cabe ao intérprete da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, 'sob o ângulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e oportuno, sem o que o argumento da segurança transmuda-se em sofisma e servirá, ao reverso, ao despotismo inexorável dos arquiconservadores de plantão, nunca a uma sociedade que se quer global, ágil e avançada - tecnológica, social e espiritualmente.

De qualquer forma, o núcleo do tipo é o constrangimento e à medida em que a vítima deixou patenteado haver mantido relações sexuais espontaneamente, não se tem, mesmo a mercê da potencialização da idade, como concluir, na espécie, pela caracterização. A presunção não é absoluta, cedendo as peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais com outros rapazes como reconhecido no depoimento e era de conhecimento público.

Na doutrina encontra-se a corroboração a esta tese. Consoante ensina Magalhães Noronha, a presunção inscrita na letra "a" do artigo 224 do Código Penal é relativa, podendo ser excluída pela suposição equivocada do agente de que a vítima tem idade superior a quatorze anos:
"Se o agente está convicto, se crê sinceramente que a vítima é maior de quatorze anos não ocorre a presunção. Não existe crime, porque age de boa-fé" (Direito Penal, 4" ed., vol. 3/221).

Também Heleno Cláudio Fragoso, em "Lições de Direito Penal", afirma que a presunção em comento não é absoluta, "pois o erro plenamente justificado sobre a idade da vítima exclui a aplicação de tal presunção".

Por tais razões, concedo a ordem para absolver o Paciente.

É o meu voto.

Marco Aurélio de Mello
Min. do STF



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