Tatiana Viggiani Bicudo e Roberto Podval
Foi com grande curiosidade que observei a aprovação do artigo 34 da Lei 9.249/95 que prescreveu a possibilidade da extinção da punibilidade do agente quando do pagamento do tributo ou contribuição social devida, antes do recebimento da denúncia, nos crimes definidos nas Leis nºs 8.137/90 e 4.729/65.
Divergentemente do pensamento do nobre advogado dr. Roberto Podval, em seu artigo "Um Grande Equívoco", publicado no Boletim de fevereiro de 1996, entendo que a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo não é um mero incentivo à impunidade, mas sim uma medida de política criminal, que visa a prestigiar o bem jurídico tutelado dos crimes definidos na Lei Contra a Ordem Tributária, Econômica e Relações de Consumo.
Como é sabido pela doutrina moderna, o Direito Penal é um instrumento que visa a proteção das relações sociais, amparando bens caros à sociedade e por isso juridicamente tutelados. No caso da sonegação fiscal, o bem jurídico tutelado é a capacidade de arrecadação do Estado. Ora, se o pagamento antes do recebimento da denúncia permite a extinção da punibilidade do agente, parece-me óbvio constituir essa causa de exclusão da punibilidade, uma medida que virá por prestigiar o bem juridicamente tutelado, e não ofendê-lo. Porquanto maior será a arrecadação do Estado, que poderá investir em áreas tão carentes de recursos. Logo, uma vez valorado o bem jurídico por meio da capacidade de arrecadação ultimada até o recebimento da denúncia, nada justificará que o Estado interfira coercitivamente por meio da seara do Direito Penal. Inegável, assim, que a possibilidade da perseguição do agente por meio do procedimento criminal, em situação em que o bem jurídico não merece mais de tutela, constitui uma violação à visão do Direito Penal atual.
Não me convence, por outro lado, o argumento de que a extinção do pagamento não deve prevalecer, porquanto cria uma desigualdade entre o empresário probo, que tem seus livros em ordem, mas ressalte-se, não pagou o tributo, e o empresário mais afortunado que sonegou dolosamente o imposto, mas tem condições de pagar o tributo. O fato de um deles ter condições de pagar o tributo para livrar-se do problema penal, diferentemente do segundo, não faz com que se torne ilegítima a causa de exclusão da punibilidade, porquanto se assim o fosse estaríamos raciocinando com um odioso Direito Penal do caráter, do ânimo, em absoluta violação ao Direito Penal da culpa. Ao meu ver, se ambos os empresários não pagam o imposto, quer em ordem seus livros ou não, inegável é a caracterização como sonegadores, devendo verificar-se a atuação dolosa ou culposa, no caso concreto, não fazendo jus que a capacidade e a possibilidade de pagar o tributo impeça a causa de exclusão da punibilidade.
Aliás, se o empresário probo, e de poucas rendas, não teve a possibilidade de pagar o tributo, a conduta não configura um ilícito típico, porquanto imperiosos o princípio "ad impossibilia nemo tenetur", ou seja, impossível exigir-se o pagamento de algo que não possuía. Tal fato, todavia, não desautoriza a legitimidade da causa de exclusão da punibilidade.
Por outro lado, também não me convence o argumento de que a sonegação aumentará por parte dos comerciantes, que deixariam de pagar o tributo, aguardando a atuação do fisco. O não pagamento de tributos ao fisco já era uma realidade que existia antes mesmo do advendo do art. 34 da Lei nº 9.249/95. A consciência profana do injusto por parte do pequeno comerciante, por exemplo, não chegará, ao meu ver, a ser alterada pela existência da causa extintiva da punibilidade, porquanto trata-se de uma medida técnico-jurídica, de conhecimento restrito aos operadores do direito. Para a população em geral, acredito que prevalecerá a idéia de que o não pagamento do tributo é uma ilicitude reprovável, não havendo uma maior sonegação pela existência de uma causa de exclusão da punibilidade. Aliás, se as causas de exclusão da punibilidade incentivassem ao crime, seria patente o aumento do número de apropriações indébitas, que por construção jurisprudencial, tornam-se atípicas caso devolvida a coisa antes do recebimento da denúncia. O mesmo ocorreria em relação ao aumento do número de casos de peculato culposo que admite a extinção da punibilidade, caso devolvido o objeto antes do recebimento da denúncia. Derradeiro, por sua vez, é o exemplo da devolução do cheque sem fundos que torna atípica a conduta do agente quando pago o valor antes do recebimento da peça acusatória. Perguntar-se-ia: aumentou-se o número de cheques sem fundos pela possibilidade de pagar-se o valor devido até o recebimento da denúncia? Parece-nos óbvio que a resposta é negativa, porquanto se o número de cheques sem provisão de fundos aumentou na praça foi fruto de variados fatores do mercado e não pela presenção da causa de exclusão da punibilidade. Recordemos que antes do advento do artigo 34 da Lei nº 9.249/95, o pagamento do tributo era, no campo penal, a prova da confissão do delito, o mesmo ocorrendo caso se enunciasse o pagamento como uma causa de diminuição da pena, de resultados duvidosos à capacidade de arrecadação do fisco.
Todos esses fatores ao meu ver, fazem com que a nova causa de exclusão da punibilidade enunciada pelo legislador seja digna de aplauso. Melhor seria, outrossim, a não vedação por parte do Presidente da República do parágrafo primeiro do art. 34, que fixava a impossibilidade da instauração de inquéritos policiais e processos crimes de natureza tributária, enquanto não confirmada na seara própria a existência ou não do tributo. Tal acepção, aliás, foi exposta, com costumeiro brilhantismo, pelo advogado Arnaldo Malheiros Filho, em sua conferência no Seminário de Direito Penal Econômico, promovido em setembro de 1995, pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, atentando-se, apenas, a meu ver, para a possibilidade da enunciação de uma obrigatória causa suspensiva da prescrição penal enquanto debatida a questão prejudicial. De qualquer modo, o artigo 34, é um indubitável avanço às medidas politícos-criminais descriminalizadoras, restringindo o Direito Penal, consoante ensina o mestre prof. Figueiredo Dias, à proteção de bens jurídicos necessários e fundamentais.
Eduardo Reale Ferrari
Advogado, professor da PUC/SP e mestrando em Direito Penal pela Universidade de Coimbra
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