Afanan-se os autores em buscar fundamentos justificadores da seleção política (pois a opção se cristaliza em lei) dos tipos penais. O adultério deve ser descriminalizado? O mero uso de substância de efeito entorpecentes deve continuar a ser punido? O crime de bagatela justifica os gastos com um processo criminal?
O chamado critério da relevância social tem sido, de modo geral, o norte do legislador. Há uma insatisfação social em virtude da inconveniência de determinados comportamentos? Pois passem eles a constituir crime, que, seguramente, sua incidência diminuirá, concluem os fazedores de leis.
E assim, desde o simples fato de alguém possuir um rádio- transmissor sem estar ele registrado na repartição competente (como ocorreu nos idos de 1964 com muitos fazendeiros que simplesmente desconheciam tal exigência, que se relacionava com a chamada segurança nacional) até o fato de o locador não dar recibo ao locatário passam a ser crime. Comer passarinho então, nem pensar. Crime inafiançável!
A par com essa preocupação em cercear a atividade das pessoas, em nome de um hipotético bem-comum, descuida-se, porém, da mesma sociedade de fornecer à maioria de seus membro, que ela pretende sejam homens de bem, reais oportunidades para terem um desenvolvimento global, isto é, material, educacional, profissional, familiar, social, espiritual, moral. A conseqüência disso é que se formam, na verdade, duas sociedades convivendo lado a lado: a ostensiva, com suas leis escritas e suas autoridades legalmente constituídas, a aqueloutra, marginal, que estabelece suas normas e suas sanções (já houve ;juiz que invocasse alguma dessa normas, como a conhecida cura de alguém preso por estupro, para justificar a pena de morte!) e seu comércio próprio (pois ela precisa de recursos para manter-se e alimentar seus membros), envolvendo bens pelos quais ;a sociedade ostensiva finge não se interessar.
A certa altura, porém, ambas essas sociedades se encontram, mesclam-se (o cantor popular que precisa adquirir a substância entorpecente, para desempenhar sua atividade lícita; o policial que vai receber o pedágio do proprietário do cassino clandestino, a pretexto de ser mal-remunerado pela sociedade ostensiva; a dona de casa que faz sua fezinha, simplesmente para tentar a sorte). Nesse momento, descobre-se que a mercadoria que circula na sociedade oculta possuiu elevadíssimo valor de mercado, capaz de cooptar número cada vez maior de pessoas de bem, como aquelas que não encontram grande diferença entre jogar no bicho ou na loto (até porque não há, realmente, diferença alguma), ou o político que, para eleger-se, sentencia que voto não tem cor.
Um preso, com ar doutoral, dizia à sua advogada, quando esta se referiu a ele como sendo um traficante que, na verdade, ele era apenas vendedor de mercadorias de venda proibida. Em realidade, aquilo que a sociedade ostensiva chama, pejorativamente, de tráfico, é ao fim e ao cabo, apenas e tão somente isso: ato de comércio (recordemos que os dicionários dão àquela palavra, como primeiro sentido, exatamente esse: "ato de comprar uma mercadoria para revender").
Chegados a esse ponto, os ocupantes do cargos políticos, as autoridades constituídas pela sociedade ostensiva para impor o respeito à ordem jurídica, descobrem, perplexos, que a sociedade marginal encontra-se mais bem aparelhada do que a sociedade oficial (veja-se o calibre das armas empregadas pelos grupos de assaltantes, para confirmar-se isso) e também mais bem organizada (como se vê de ações coletivas muito bem planejadas e executadas com incrível rapidez; ou a inacessibilidade aos redutos onde mourejam os líderes ;desses grupos). À mentira do político (o rio Tietê estará limpo até o fim do ano…) segue-se a verdade do marginal (quem acerta no bicho recebe).
O que nos leva a uma fácil previsão: se a sociedade oficial não se organizar, no sentido de tornar mais transparente sua atividade e o zelo pelos chamados valores morais, essa promiscuidade tenderá a fazer prevalecer os interesses subterrâneos tornadas ineficazes as medidas tradicionais de combate à criminalidade (até porque a prisão de líderes não torna acéfalos os grupos marginais, como é público e notório.)
Adauto Suannes
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