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Boletim - 32 - Agosto / 1995


Editorial

A "modernização" da legislação penal brasileira

Alberto Silva Franco

Em pleno regime militar, ou mais precisamente, no ano de 1969, tentou-se, sem sucesso, a reformulação da legislação penal brasileira, que provinha de um outro período não menos autoritário, ou seja, do Estado Novo. O Código Penal de 1969, emanado da Junta Militar que estava, então, à testa da Nação, foi suspenso no período de usa "vacatio legis" e, em verdade, não chegou a viger. Após esse episódio, a Parte Geral foi modificada através da lei 7.209/84, mas a Parte Especial do Código Penal permanece, em linhas gerais, intocável, há mais de meio século. É exato que, em 1983, foi nomeada Comissão para a elaboração de anteprojeto de lei modificadora da Parte Especial e os trabalhos realizados foram publicados em 1984, resultando daí uma nova versão em 1987. Mas o anteprojeto morreu, sem choro, nem vela. No ano de 1993, nova Comissão foi nomeada e, sem que se conheçam sequer as propostas apresentadas, pois nenhuma publicação oficial foi efetuada, finou-se o pré-projeto, sem "causa mortis" detectável. Nem bem se deram por findas as cerimônias fúnebres e já outra Comissão era nomeada para a "modernização", no seu todo, da legislação penal brasileira. Não é mister que se enfatize a imperiosa necessidade desse processo – cinqüenta e cinco anos de defasagem, no tempo, evidenciam o atraso legislativo – mas a pretendida "modernização" não pode servir de pretexto para que se omitam duas considerações prelimiares: a) a de que vige, no Brasil, o Estado Democrático de Direito alicerçado sobre os princípios estruturantes do art. 1º da Constituição Federal de 1988 e b) a de que qualquer processo de modernização de uma legislação – e, em especial, da legislação penal – não pode ser montado a partir de meras questões pontuais, porque se pode, nesse caso, perder de vista os fins últimos que devem norteá-lo. Quando a ação legislativa versa sobre uma relação tensional tão delicada como a que surge entre o direito de liberdade da pessoa humana e o poder repressivo estatal, todo cuidado é pouco e, por isso, é imprescindível que se diga, com clareza e explicitude, o que se pretende regular para que encontre legitimidade o mecanismo controlador de conseqüências tão graves.

Ora, a "modernização da legislação penal brasileira" começa mal, muito mal mesmo.

Num Estado Democrático de Direito, em que se reconhessem expressamente, no seu pacto fundador, tanto o respeito à dignidade da pessoa humana, como a importância e a validade do pluralismo político, não se compreende que se remeta ao Poder Legislativo, sem nenhuma discussão prévia com a própria sociedade – e até mesmo com os operadores do Direito Penal e Processual Penal – matéria de tal alta relevância. Os juízos sobre a suficiente importância social do bem jurídico a ser tutelado e a necessidade de proteção pelo Direito penal não são neutros; antes, constituem expressão de uma valoração ético-política de que deve, obrigatoriamente, participar toda a sociedade. Destarte, um Estado democraticamente legitimado que estabeleceu níveis de tolerância em relação a condutas ou formas de vida que correspondem às mais diversas visões, morais ou culturais, do mundo – que respeita, portanto, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político – não pode incriminar procedimentos que não lesem bens jurídicos relevantes, nem provoquem danos sociais insuportáveis. Bem por isso, é imprescindível que se discuta, de modo abrangente, com a sociedade, o âmbito do punível que deve ficar circunscrito a um mínimo que se mostre equivalente com a área de consenso acolhida por essa mesma sociedade.

Por outro lado, uma reformulação do Código Penal "por etapas", "de modo paulatino", "começando pelos temas mais prementes e menos polêmicos" – se é que algum tema tratado nas três leis reformadoras pelo Governo Federal permita essas inferências – dá margem a uma ruptura do inequívoco sentido de unidade que deve presidir à sistematização penal e provoca intoleráveis ofensas ao princípio da proporcionalidade, com estabelecimento de sanções punitivas que não são ajustáveis à nocividade social das condutas incriminadas e são aberrantes em relação ao quadro de penas preexistentes.

É francamente lamentável – e mesmo paradoxal – que um Direito Penal, de origem tão autoritária, ganhe força e expressão alguns anos após ter o Brasil se incorporado no rol dos países democráticos.

Alberto Silva Franco



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