INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 31 - Julho / 1995


Editorial

A Lei antitruste

Pérsio Mancebo

Dispõe a Lei 8.884, de 11.6.1994, denominada Lei Antitruste, sobre a prevenção e a represão às infrações contra a ordem econômica, de acordo com os preceitos constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico, estabelecendo uma espécie de contencioso administrativo que visa coibir todas as práticas que sejam consideradas lesivas ao interesse dos consumidores e inibam a prática da concorrência.

Instaura-se o procedimento de ofício ou mediante representação do interessado para averiguações preliminares, que poderá ser convertido em processo administrativo.

Incumbe à Secretaria de Direito Econômico o acompanhamento da investigação, com a participação da Secretaria Política Econômica da Fazenda, que emitirá parecer sobre as matérias de sua especialização. Encerrando o inquérito, poderá ser arquivado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), dependendo do resultado das investigações. Caso contrário, será distribuído o processo a um Conselheiro Relator para instrução e posterior julgamento da questão pelo plenário.

De acordo com o artigo 50 da referida lei, as decisões do CADE não comportam revisão no âmbito do Poder Executivo; e o artigo terceiro atribui à referida autarquia funções judicantes e suas decisões caracterizam-se como título executivo extrajudicial: vale dizer, na prática foi criada outra espécie de contencioso administrativo, como ocorre com os Tribunais de Contas, Tribunais Marítimos, Conselho de Contribuintes e Juntas do Instituto Nacional de Previdência Social.

2. No âmbito do processo regulado pela lei em questão podem ser adotadas medidas preventivas e ordem de cessação de práticas consideradas contrárias a lei de concorrência e controle de atos e contratos desde que possam limitar ou prejudicar concorrência ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços.

O processo de execução da decisão do CADE terá preferência sobre as demais ações, exceto habeas-corpus e mandado de segurança.

Do confronto desses dispositivos legais surgirão questões sobre a possibilidade de processamento paralelo de ações administrativas, ações judiciais, tanto no âmbito civil como criminal, um vez que do mesmo fato a conduta do agente poderá ser questionada sob o prisma administrativo, civil ou penal.

3. Daí a conveniência de algumas considerações sobre os critérios tradicionais de caracterização de tipos penais e as peculiaridades dessa técnica para a descrição de condutas no âmbito do Direito Econômico.

Domínio dos mercados, eliminação de concorrência e aumento arbitrário dos lucros são situações que caracterizam o abuso do poder econômico. Vejam-se a propósito as descrições das condutas constantes dos artigos 20 e 21 da Lei nº 8.844/94.

Trata-se de tipo de ilícito que a lei manda combater, quaisquer que sejam as formas que assuma.

Assim, as formas de abuso, para serem incriminadas, necessitam de um processo integrativo, que só se aperfeiçoa com a ocorrência de situações determinadas em lei, de sorte que a situação faz parte integrante do tipo, o que, em tese, bastaria para concluir que a tentativa não se enquadraria tipicamente como conduta punível.

Há precedente jurisprudencial do CADE, entretanto, que afirma: "O uso do meio é o bastante para configurar a infração, ainda que o domínio (de mercado) não se efetive, nem se criem as condições monopolísticas visadas. A lei de repressão seria inútil se para a sua aplicação fosse exigido o clássico requisito do Direito Penal (Rev. Dir. Econômico, 21/27).

Nessa matéria seria pouco realista exigir a concretização dos resultados previstos na lei para desencadear a ação repressiva.

As formas de abuso do poder configuram situações de perigo e, como tais, são tipicamente suficientes para atrair a repressão administrativa.

Segue-se que basta a presença, isolada ou simultaneamente, das situações de perigo consistentes em domínio de mercados, eliminação de concorrência ou aumento arbitrário dos lucros, para se consubstanciarem formas puníveis de abuso do poder econômico.

É importante enfatizar que o resultado da eliminação da concorrência ocorre em conseqüência de um ou mais atos.

Muitas vezes no iter formativo do resultado ilícito, concorrem figuras instrumentais as mais diversas.

Nem sempre atos ou fatos individualmente considerados se subsumem no elenco legal, não podendo, em si mesmos, ser considerados ilícitos.

Mas, quando se pode perceber, ainda que individualmente, que tais atos ou fatos se vinculam a finalidade reconhecidamente contrária à lei, integrando-se em um processo de eliminação total ou parcial da concorrência, impõe-se a intervenção do CADE para acautelar interesses e valores jurídicos cujo comprometimento seja tido como inevitável ao longo do tempo.

Todavia, esse poder inibitório a ser exercido pelo CADE não se confunde com o poder punitivo.

O seu exercício se fundamenta na cautela e na proteção a priori do interesse público e não no ius puniendi do Estado.

O problema das formas do abuso do poder econômico está relacionado com o problema da tipicidade das previsões legais, definidoras dessa modalidade de ilícito.

No âmbito do Direito Penal Econômico há tendência para conceitos juridicamente indeterminados para aludir à imprecisão conceitual do delito econômico, com acentuado declínio da subsunção dos fatos à conceitos jurídicos fixos (tipicidade fechada) e pela crescente valoração autônoma por parte do aplicador da lei, no processo de alcançar o sentido e a abrangência das normas prescritivas em linha de evolução do direito estrito ao direito equitativo.

Essa, a hermenêutica dos tipos de abuso do poder econômico que tende a predominar.

No processo interpretativo com a influência dos standards jurídicos ou modelos abertos, há tendência para uma renovada visão da chamada tipicidade fechada para atendimento da realidade contemporânea de entender os limites da atividade jurisdicional para além do formalismo clássico.

O casuismo legal, por mais pormenorizado que seja, não abriga todas as modalidades de concertos articulados para fraudar a ordem leal.

Aí, a grande tarefa dos aplicadores da nova lei: conciliar de um lado eficácia e repressão e de outro, tipicidade e reserva legal, certamente dos mais agudos desafios com que se defrontarão os juristas pátrios.

Pérsio Mancebo



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