INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 27 - Março / 1995


Editorial

A identificação no inquérito criminal

Francisco José Galvão Bruno

"Os únicos erros realmente imperdoáveis são os não intencionais."

P.J. O'Rourke

Parece que, no Brasil, as mudanças realmente proveitosas para as classes menos favorecidas são sempre realizadas pela direita – às vezes com a esquerda, às vezes sem e às vezes contra ela. (Esquerda e direita num sentido bastante amplo: forças progressistas e forças conservadoras.) É claro que são mudanças no melhor estilo do Príncipe Salina, de Di Lampedusa: mudar apenas o necessário para tudo permaneça como está. Mais pelo menos são mudanças, e estas muitas vezes escapam ao controle dos operadores, produzindo resultados inesperados; ao passo que a esquerda se especializou, historicamente, em belos discursos e – nas raras ocasiões em que teve oportunidade – mudanças inócuas, quando são desastrosas.

Tudo isso vem a propósito do art. 5º, LVIII, da Constituição Federal: "o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nos casos previstos em lei". Afirmam nossos progressistas, orgulhosos, que se trata de grande conquista no que toca aos direitos individuais: asseveram que a norma veio responder a anseio dos Advogados e da população em geral, que consideravam humilhante ter de "tocar piano" quando do indiciamento em inquérito. Na verdade, ouviram cantar o galo, mas não perceberam onde – e ainda o confundiram com um rouxinol.

Em primeiro lugar, não é a população em geral que considera a identificação humilhante, mas apenas uma minoria de privilegiados, geralmente indiciados em inquéritos por lesões corporais culposas ou assemelhados. A população mais humilde, menos favorecida, não se importa de fornecer as digitais, mesmo porque , para ganhar a vida, está acostumada a meter a mão em coisas muito piores que almofadas de carimbo.

Em segundo lugar, e isso é o mais importante, não é a identificação datiloscópica em si que se pode considerar humilhante, mas o que ela representa: o indiciamento. Este, sim, pode humilhar, dependendo do caso concreto; pode mesmo ser ilegal, dando ensejo a habeas-corpus. A identificação datiloscópica, por outro lado, é mera formalidade, sem nenhum caráter punitivo. Visa tão –só a individualizar corretamente a pessoa que deva ser processada. Tanto isso é verdade que ninguém jamais se considerou humilhado por "tocar piano". E o ato é exatamente o mesmo; muda apenas a finalidade.

A não –identificação em nada modifica a humilhação, quando ela existe, do indiciamento. O suspeito continua a se4 interrogado; continua a responder às "perguntas de praxe" (se está arrependido, se estava bêbado quando praticou o crime etc.); seu nome continua a constar, ad aeternum, nos prontuários e folhas de antecedentes. A nova situação nada trouxe de bom; e, como muitas criações de esquerda, causou um resultado perverso, por certo não previsto e não intencional; muitos criminoso usam documentos de identidade falsos e não são identificados datiloscopicamente. Isso já por várias vezes acarretou a prisão de pessoas inocentes, que jamais imaginaram estivessem sendo processadas.

Foi esse o fato que despertou o interesse do Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária para a questão: meu antecessor, o Juiz Geraldo ?Francisco Pinheiro Franco, submeteu estudo a diversas autoridades, visando a normatizar a identificação datiloscópica (já que a CF ressalva os "casos previstos em lei"). Sem nenhum sucesso, porém; ao que parece poucos se comovem por pessoas inocentes passarem dias, meses ou até anos presas. No referido expediente, um preclaro jurista chegou a sugerir, seriamente, que as autoridades policias deveriam usar lupas para examinar os dedos dos indiciados, comparando-os com as impressões do documento. Seria de imaginar que o autor de semelhante idéia, a ser aplicada num país como o nosso, fosse expulso do recinto às gargalhadas; pois não apenas não o foi, como o parecer foi aprovado. Outro jurista de renome afirmou que "um dos dois casos isolados" (desde que, imagino, não se trate de clientes dele) não justificam a mudança do sistema. Pois eu acho que mesmo, que fosse um só pessoa inocente presa e já se precisaria de medidas para evitar se repetisse o engano. Mas não é um caos, nem são dois; são muitos, e continuam a acontecer.

Se nossa esquerda desejava inovar nesse campo, por que não acabou com a figura do indiciamento? Veja-se que uma pessoa suspeita da prática de um crime pode, mal iniciadas as investigações – e isso muitas vezes ocorre, de ato – tornar-se um "indiciado". E esta é qualidade que não se perde, dura para sempre. Mesmo que arquivado o inquérito, ainda que o seja por inexistência do fato, continua-se "indiciado". E por que? Sem nenhum motivo plausível. Melhor seria não se fizesse nenhum registro ou anotação quanto à identidade do suspeito durante as investigações. Ele seria corretamente individualizado, inclusive com exame datiloscópico, mas só se procederia a registros e anotações se houvesse denúncia. Caso contrário, nada ficaria constando contra ele. Isso, sim, seria útil para as pessoas menos favorecidas, que muitas vezes deixam de conseguir emprego porque foram "indiciadas". E saibam os preclaros defensores da não – identificação que a grande maioria por certo preferirá conseguir um emprego de dedos sujos do que perdê-lo de dedos limpos.

Francisco José Galvão Bruno



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