"Os únicos erros realmente imperdoáveis são os não intencionais."
P.J. O'Rourke
Parece que, no Brasil, as mudanças realmente proveitosas para as classes menos favorecidas são sempre realizadas pela direita – às vezes com a esquerda, às vezes sem e às vezes contra ela. (Esquerda e direita num sentido bastante amplo: forças progressistas e forças conservadoras.) É claro que são mudanças no melhor estilo do Príncipe Salina, de Di Lampedusa: mudar apenas o necessário para tudo permaneça como está. Mais pelo menos são mudanças, e estas muitas vezes escapam ao controle dos operadores, produzindo resultados inesperados; ao passo que a esquerda se especializou, historicamente, em belos discursos e – nas raras ocasiões em que teve oportunidade – mudanças inócuas, quando são desastrosas.
Tudo isso vem a propósito do art. 5º, LVIII, da Constituição Federal: "o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nos casos previstos em lei". Afirmam nossos progressistas, orgulhosos, que se trata de grande conquista no que toca aos direitos individuais: asseveram que a norma veio responder a anseio dos Advogados e da população em geral, que consideravam humilhante ter de "tocar piano" quando do indiciamento em inquérito. Na verdade, ouviram cantar o galo, mas não perceberam onde – e ainda o confundiram com um rouxinol.
Em primeiro lugar, não é a população em geral que considera a identificação humilhante, mas apenas uma minoria de privilegiados, geralmente indiciados em inquéritos por lesões corporais culposas ou assemelhados. A população mais humilde, menos favorecida, não se importa de fornecer as digitais, mesmo porque , para ganhar a vida, está acostumada a meter a mão em coisas muito piores que almofadas de carimbo.
Em segundo lugar, e isso é o mais importante, não é a identificação datiloscópica em si que se pode considerar humilhante, mas o que ela representa: o indiciamento. Este, sim, pode humilhar, dependendo do caso concreto; pode mesmo ser ilegal, dando ensejo a habeas-corpus. A identificação datiloscópica, por outro lado, é mera formalidade, sem nenhum caráter punitivo. Visa tão –só a individualizar corretamente a pessoa que deva ser processada. Tanto isso é verdade que ninguém jamais se considerou humilhado por "tocar piano". E o ato é exatamente o mesmo; muda apenas a finalidade.
A não –identificação em nada modifica a humilhação, quando ela existe, do indiciamento. O suspeito continua a se4 interrogado; continua a responder às "perguntas de praxe" (se está arrependido, se estava bêbado quando praticou o crime etc.); seu nome continua a constar, ad aeternum, nos prontuários e folhas de antecedentes. A nova situação nada trouxe de bom; e, como muitas criações de esquerda, causou um resultado perverso, por certo não previsto e não intencional; muitos criminoso usam documentos de identidade falsos e não são identificados datiloscopicamente. Isso já por várias vezes acarretou a prisão de pessoas inocentes, que jamais imaginaram estivessem sendo processadas.
Foi esse o fato que despertou o interesse do Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária para a questão: meu antecessor, o Juiz Geraldo ?Francisco Pinheiro Franco, submeteu estudo a diversas autoridades, visando a normatizar a identificação datiloscópica (já que a CF ressalva os "casos previstos em lei"). Sem nenhum sucesso, porém; ao que parece poucos se comovem por pessoas inocentes passarem dias, meses ou até anos presas. No referido expediente, um preclaro jurista chegou a sugerir, seriamente, que as autoridades policias deveriam usar lupas para examinar os dedos dos indiciados, comparando-os com as impressões do documento. Seria de imaginar que o autor de semelhante idéia, a ser aplicada num país como o nosso, fosse expulso do recinto às gargalhadas; pois não apenas não o foi, como o parecer foi aprovado. Outro jurista de renome afirmou que "um dos dois casos isolados" (desde que, imagino, não se trate de clientes dele) não justificam a mudança do sistema. Pois eu acho que mesmo, que fosse um só pessoa inocente presa e já se precisaria de medidas para evitar se repetisse o engano. Mas não é um caos, nem são dois; são muitos, e continuam a acontecer.
Se nossa esquerda desejava inovar nesse campo, por que não acabou com a figura do indiciamento? Veja-se que uma pessoa suspeita da prática de um crime pode, mal iniciadas as investigações – e isso muitas vezes ocorre, de ato – tornar-se um "indiciado". E esta é qualidade que não se perde, dura para sempre. Mesmo que arquivado o inquérito, ainda que o seja por inexistência do fato, continua-se "indiciado". E por que? Sem nenhum motivo plausível. Melhor seria não se fizesse nenhum registro ou anotação quanto à identidade do suspeito durante as investigações. Ele seria corretamente individualizado, inclusive com exame datiloscópico, mas só se procederia a registros e anotações se houvesse denúncia. Caso contrário, nada ficaria constando contra ele. Isso, sim, seria útil para as pessoas menos favorecidas, que muitas vezes deixam de conseguir emprego porque foram "indiciadas". E saibam os preclaros defensores da não – identificação que a grande maioria por certo preferirá conseguir um emprego de dedos sujos do que perdê-lo de dedos limpos.
Francisco José Galvão Bruno
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