Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
O conceito de equidade possui uma história associada à justiça. A equidade de gênero, portanto, é uma das expressões da realização de uma virtude política, que deve ser perseguida por todas as sociedades consideradas civilizadas. Longe de ser sinônimo de alternância de sujeição nos círculos de poder, corresponde ao empenho e comprometimento renovável pela correção de distorções sociais e desigualdades.
Em um país como o Brasil, cuja história está marcada por mais de três séculos de escravização de pessoas negras e pelo extermínio dos povos indígenas, a condição social, política e econômica das mulheres se soma aos efeitos de opressões estruturais. Para tais violências que atravessam os corpos femininos podem concorrer ou não ações individuais com potencial para agravá-las ou minimizá-las.
Nesse sentido, as particularidades relativas a gênero, raça, classe e sexualidade, que tornam mais consciente o processo estrutural de exclusão de determinados grupos sociais, passaram a ser alvos de atenção do IBCCRIM, que dedica um esforço de entendimento, respeito e possibilidades institucionais de enfrentamento às violações de direito.
Medidas efetivas foram tomadas, como a implementação da política de bolsas em todos os cursos e eventos promovidos pelo Instituto, a abertura de espaços de visibilidade e a garantia de novos protagonismos em atividades institucionais, além da criteriosa política de isenção associativa que, entre outras, resultaram em um ganho significativo e diverso de aprendizagens, assim como contribuiu para amadurecimentos institucionais e individuais. O compromisso do IBCCRIM com a pluralidade o torna apto a afirmar que caminha em direção à equidade.
Tal compromisso se intensifica na luta constante pelo questionamento e pelo desafio dos padrões de comportamento naturalizados.” Esse processo de “construção social destrutiva”, a partir de opressões normalizadas, impõe-se tanto às mulheres quanto aos homens, favorecendo, por omissão, o aumento dos sofrimentos e tornando dolorosos os processos de socialização.
As parcerias firmadas pelo IBCCRIM buscam a superação dos padrões de comportamento femininos estabelecidos pela imposição silenciosa da masculinidade. Elas pretendem ainda (i) se contrapor à suposta “normalidade” heterossexual, que oprime os homossexuais; e (ii) visam o combate ao entendimento de que ser negro é ser o “outro” do branco, que, por sua vez, deve perder a sombra da neutralidade. Entender o outro é uma maneira de compreendermos a nós mesmos. Todo e qualquer percepção que se norteia por discursos sobre insuficiências e contraditórios tenderá a colocar o diferente em falsa situação de inferioridade.” A compreensão das causas e dos efeitos da violência de gênero, nessa perspectiva, exclui qualquer justificativa que apoie a existência de um modelo ideal de sujeito. A eleição do “sujeito de direito”, sem dúvidas, é política, hierarquizada e parcial e, portanto, compõe um conjunto de diretrizes econômicas, sociais, raciais e sexuais, que têm como parâmetro a identidade de quem detém poder na sociedade.
O balanço dos resultados obtidos até o presente momento deve envolver o exercício da autocrítica, compreendendo suas suficiências e insuficiências, nas dimensões individual e coletiva. Autocriticar-se não significa a conscientização momentânea para, no momento seguinte, voltar a cometer os mesmos erros. Trata-se de uma demonstração de seriedade, de coragem com os compromissos assumidos e de aprendizado. A autocrítica é, portanto, o oposto da hipocrisia, que consiste em prescrever aos outros o que deixamos de fazer em nossas próprias vidas e espaços de trabalho.
Reforçando: não há instituição isenta ou acima da sociedade que a produz. É certo que os avanços ainda podem expandir e auxiliar, sobremaneira, a concretização irrevogável dos vetores políticos e valorativos que notabilizam o IBCCRIM entre as mais respeitadas organizações de direitos humanos no Brasil. Os mesmos que, diga-se de passagem, fazem do Instituto um importante espaço de contribuição acadêmica e de resistência.
Nessa mesma perspectiva, as mulheres têm aumentado em quantidade a sua presença nos espaços jurídicos, dando contribuições inafastáveis aos debates. Mas, como as mulheres não são um todo homogêneo sem cor, orientação sexual e classe, é sintomático que estes fatores passem a se impor como preocupações urgentes e incômodas ao mundo tão tradicionalmente masculino, heterossexual, branco, cisgênero e elitista das ciências criminais.
A não correspondência radical ao tradicional ou, até mesmo, a não aceitação dos papéis sociais determinado pelas convenções influenciam uma produção necessária às ciências criminais. Logo, a inclusão de mulheres no campo jurídico não deveria ser vista como uma abertura benevolente de resposta à capacidade que se presume social às mulheres, mas como fundamental autocrítica em assumir que as ciências criminais dependem das contribuições de mulheres plurais para efetivar mudanças estruturantes.
Ao IBCCRIM resta indiscutível, que as particularidades somadas ao gênero, como raça, classe e sexualidade, determinam qual será o grau de abertura para contribuições de mulheres, sendo que algumas, inevitavelmente negras, lésbicas e/ou transexuais, tampouco terão uma pequena fresta. O enfrentamento ao abismo nas participações sociais, políticas e econômicas dentro do grupo “mulheres” é um desafio às naturalizações de práticas presumidamente inofensivas. Da mesma forma, a promoção da visibilidade de mulheres historicamente marginalizadas pode representar uma afronta às hierarquias tradicionais de poder.
Nas palavras de Sueli Carneiro: “são perplexidades, ainda, que decorrem de inquietações acerca da permanência de idéias [sic] e das práticas de discriminação de base racial num contexto em que diferentes campos do conhecimento as desautorizam (...).”().
O IBCCRIM convida a todas e todos, neste mês de março de 2020, a desautorizarem as perplexidades. Inseridas na sociedade brasileira, todas as pessoas, invariavelmente, são forjadas, de alguma maneira, pelas estruturas de manutenção e reprodução das opressões, delas recebendo tratamentos sociais, políticos e econômicos variados. Autocriticar a falsa neutralidade é concorrer para a equidade e afastar igualdades presumidas e prejudiciais.
Nota
() CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Feusp, 2005. p. 9.
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