INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 325 - Dezembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Editorial

O falso dilema entre literalismo e voluntarismo: um caso emblemático no STF

O artigo 403 do Código de Processo Penal não estabeleceu um tratamento diferenciado às alegações finais a ser acostadas pelo acusado não delator. Pudera. Quando de sua redação, ainda não existia a figura do réu delator. Uma lei nunca estabelece todas as hipóteses de aplicação. Isso é comezinho em hermenêutica. Não existem leis perfeitas. Cabe ao intérprete fazer um ajuste, um fit, como diria Dworkin.

Por vezes, os juristas caem em um falso dilema. Quando interessa, são “literalistas”. E em outras oportunidades, a literalidade nada vale, adotando, assim, uma postura voluntarista. Ora, é impossível manter literalismo sempre. E é impossível ignorar os limites formais de um texto.(1) Não é proibido aplicar uma lei literalmente, desde que haja respaldo constitucional para essa leitura. E não é proibido avançar em relação ao texto, que, por vezes, necessita ser adaptado à Constituição e aos princípios conformadores de garantias processuais, como foi o caso do artigo 403.

Aliás, para quem duvida desta afirmação, é recomendável a leitura da peça Medida por Medida de Shakespeare. Verá que Cláudio é condenado à morte a partir de uma interpretação literal, tacanha; e, depois, é libertado por um ato voluntarista, quando o juiz troca a lei por um ato sexual com a irmã do réu. Shakespeare, como um autêntico moderno, entendia muito bem de interpretação!

No Supremo Tribunal Federal, por ocasião da sustentação oral de Lenio Streck no caso da ADC 44, foi pedido aos ministros que votaram pela aplicação literal do artigo 403 do CPP, dias antes, que assim o fizessem em relação ao artigo 283, do mesmo CPP, com objetivo de deixar claro a complexidade do ato de interpretar o Direito.

Pois, no “caso das alegações finais de réu não delator”, o plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de 7 a 4, assentou que as alegações finais do réu delatado devem vir por último, isto é, de todo modo, devem vir depois das do réu delator. No fundo, fez-se uma interpretação-conforme-ao-devido-processo-legal e ao direito à ampla defesa, previstos no artigo 5º da Constituição Federal. Restou, no entanto, a discussão acerca dos efeitos.

Na verdade, tratando-se de direitos fundamentais (no caso, o STF já reconheceu que a ampla defesa e o devido processo legal são dessa extirpe), não se pode falar em modulação ou outro nome que se dê à coisa.

Todavia, por 8 votos a 3, o STF decidiu, embora dizendo que não cabe modulação, deixar aberta a porta daquilo que disse não pretender fazer: a própria modulação, o que fez o ministro Lewandowski brincar com a questão, dizendo, como que a repetir Shakespeare, em Romeu e Julieta (a rosa perderia seu perfume se lhe mudassem o nome),  “ainda que se chame a um gato de cachorro, ele não deixará de miar” e, sim, apenas de fixar uma tese. Na verdade, um tribunal julga. Não faz teses. Tribunal julga causas.

De todo modo, a decisão está tomada. Resta, agora, saber qual será o alcance da decisão. O fato - e fatos existem - é que o STF (já) disse que se tratava de uma nulidade absoluta, tanto é que anulou a decisão , ao conceder a ordem de Habeas Corpus. Porém, ronda o espectro da nulidade absoluta versus nulidade relativa. Para além de um espectro, trata-se de uma falsa dicotomia, sustentada no adágio pásde nulitté sans grief (não há nulidade sem prejuízo ).

Ocorre que esse adágio não é princípio; esse adágio é anterior a Constituição; esse adágio vai contra a tese desenvolvida contemporaneamente de que uma nulidade do naipe de um direito fundamental (no caso, ampla defesa e devido processo legal) é sempre absoluta. Deve ser dada de ofício. O tribunal não dispõe da nulidade. Não é mensurável. Ela é! Simplesmente é. Presume-se o prejuízo.

Por isso, é preciso insistir: a decisão de concessão do Habeas Corpus fez uma leitura constitucionalmente adequada dos dispositivos do Código que tratam disso. Assim decidindo, o STF criou jurisprudência no sentido da aplicação do devido processo legal substantivo (ampla defesa efetiva). Claro que isso tem consequências .

(i) Já não se pode simplesmente dizer que somente alguns réus devem ter o direito de ter a sentença anulada.

(ii) O direito ao devido processo legal não depende e não pode depender de quem pedir.

(iii) A concessão da garantia de ampla defesa efetiva-substantiva decorre de obrigação do Estado.

(iv) E, em sendo a decisão do STF a afirmação do devido processo legal substantivo, não se pode exigir que o réu prove o prejuízo para dele se beneficiar. Por quê? Porque este é ínsito ao não cumprimento do substantive due process of law.

(v) Em síntese: O prejuízo é presumido.

(vi) Se o STF restringir os efeitos da decisão, irá transigir com normas constitucionais. (vii) Em face de casos de violação, o tribunal não pode deixar de assegurar essas garantias, sob pena de usurpação do lugar que é dos constituintes. Em nenhum lugar do mundo, a começar pelos Estados Unidos, restringe-se o efeito retroativo de uma anulação em favor do réu; restringe, sim, apenas quando a anulação prejudica o réu. (viii) Trata-se do velho princípio da regra mais favorável, presente em todos os sistemas jurídicos democráticos, inclusive no Brasil.

Por último, há que registrar que a tese que pretende limitar os efeitos (por todos, cito o Ministro Roberto Barroso) funciona como uma palavra mágica tipo “abre-te Sésamo”: o réu, para se beneficiar da decisão do STF, tem de alegar e provar o prejuízo. O que é isto, na prática? Simples: Pura (ou impura) subjetividade. Dependerá, sempre, do Tribunal.

Contra isso, fica autorizada uma analogia ou uma alegoria com o futebol. O ludopedismo sempre ajuda a entender melhor as coisas:

(i) O réu ter de alegar ou provar o prejuízo é como bater pênalti com goleiro vendado e amarrado: se ele não disser que suas chances são nulas, vale o gol, já que sua impossibilidade de ver e se mexer não demonstram por si só o prejuízo. (ii) Ou, por outra alegoria, o árbitro diz: se não reclamarem eu não marco impedimento, ainda que ele exista e desse impedimento saia um gol.

Resta saber como será o placar desse grande jogo que será a decisão acerca do alcance da nova jurisprudência (um novo precedente), tratando da redefinição significativa do artigo 403 do CPP.

O que importa é que os sentidos das palavras do texto constitucional não pertencem ao STF. Os sentidos da Constituição não são privados, não pertencem aos integrantes da Corte. Eles são públicos, construídos em linguagem pública.

Por isso, o STF não pode dar às palavras o sentido que quer. Isto vale para todos os dispositivos legais e constitucionais. Por isso é que, no conto de Lewis Carol (Alice Através do Espelho), a personagem Alice contesta Humpty Dumpty quando este lhe diz que pode haver, em vez de um aniversário, 364 desaniversários. Ela “esgrime a Constituição” (com o amparo da licença poética) e diz: “- Não pode ser assim”. E Humpty Dumpty responde: “Pode, sim. Porque eu dou às palavras o sentido que quero”.

E a comunidade jurídica deve responder também: não, não pode ser assim!

Nota

(1)  Nesse sentido, ver: STRECK, Lenio Luiz. O literalista e o voluntarista diante dos cães na plataforma. In: Revista Consultor Jurídico, 7 out. 2019.



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