Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Vivemos tempos de acaloradas discussões sobre o sistema penal em geral, mas também sobre a Execução Penal em particular. As contendas, antes relativamente restritas a âmbitos de estudos específicos, vêm com crescente vigor chegando ao grande público, cujo interesse é dia após dia despertado por sempre renovadas notícias envolvendo figuras de relevo .
Com o incremento da população carcerária, caminhando lado a lado com um igualmente inegável aumento da sensação de insegurança sentida por boa parte da população, levantam-se vozes, seja à esquerda ou à direita, proclamando certezas sobre o melhor rumo da Execução Penal. Os matizes discursivos variam do absoluto desprezo pelos direitos humanos, e por quaisquer direitos subjetivos dos apenados, ao absoluto desprezo pela própria questão penal em si, sendo que diversos setores identificados como progressistas entendem o encarcerado como mero subproduto do sistema capitalista de produção, despojado de subjetividade e sem possibilidade de protagonismo. A paixão dos debates é facilmente constatada por todos os que navegam em sites de notícias ou em redes sociais.
E, justamente no ano em que os debates apaixonadamente unilaterais parecem atingir seu paroxismo, tivemos, em junho último, o falecimento de uma das raras pessoas que, no campo minado da Criminologia e da Execução Penal, buscava desbravar o árduo caminho entre trincheiras em combate: Alvino Augusto de Sá, o maior criminólogo clínico brasileiro das décadas recentes e membro do Conselho Consultivo do IBCCrim.
O olhar de Alvino de Sá se atrevia entre apaixonadas trincheiras combatentes por uma razão bastante simples de ser compreendida, porém de maneira alguma simplória. Seria simplóriodizer apenas que sua sabedoria se dava porque permanecia aberto ao diálogo; embora tal abertura seja essencial para a compreensão da obra de Alvino, certamente não explica tudo. A principal razão é ainda mais simples: enquanto tantos a seu redor se voltavam às estruturas, às complexas dinâmicas sociais, às enferrujadas engrenagens jurídicas ou às ilusões da técnica, seu olhar mirava diretamente o sujeito. E porque, como psicólogo, conhecia profundamente a insondável riqueza humana, recusava ser levado pela lábia sedutora dos que se debruçam sobre os problemas humanos desdenhando o sujeito humano.
Em sua última obra – e, para muitos, seu magnum opus –, objetivamente intitulada Criminologia clínica e execução penal, Alvino de Sá abre-se a diversos ventos, mas permanece firme em seu centro. Não se deixa abalar, ao mesmo tempo em que não despreza preciosidades, venham de onde possam vir. Ensina, com enorme propriedade, sobre o modelo médico-psiquiátrico, dirigindo-lhe severas críticas, mas sem deixar de reconhecer-lhe o valor histórico. Idêntica abordagem dirige ao modelo psicossocial e à Criminologia Crítica: sem se afastar em demasia, lança críticas precisas; sem se deixar envolver demais, reconhece, em pensamentos tão diversos, seus méritos intrínsecos. Seu texto é uma cuidadosa costura entre ideias multifacetadas, construindo um diálogo cuja harmonia é garantida porque jamais perde de vista seu fio condutor: o ser humano.
Para Alvino de Sá, que em seus últimos anos passou a dedicar especial atenção à obra (também aberta à riqueza das múltiplas vozes) de Álvaro Pires, é possível, a um só tempo, reconhecer a responsabilidade individual de escolha sem ignorar a tão conhecida crueldade do sistema prisional. É possível, a um só tempo, reconhecer a realidade ontologicamente problemática de certos atos humanos, sem deixar de admitir que sua elevação à categoria de crime não se dá senão pela definição legal.
No âmbito da Execução Penal, seu locus de excelência, o pensamento de Alvino de Sá se mostra ainda rico, avesso a simplificações próprias aos ávidos por a tudo reduzir à mediocridade da própria unilateralidade . Rejeita a simplória ideia de ressocialização, ao mesmo tempo em que, recorrendo a Alessandro Baratta, explana cuidadosamente as relações entre diálogo e reintegração social. Não defende o cárcere, ao mesmo tempo em que se recusa a ser identificado com o abolicionismo: é possível, para Sá, que sejam propostos caminhos apesar do cárcere, tomando a prisão como um dado que, queiramos ou não, permanecerá.
Nenhuma dessas ponderações indica mero intento de manter-se isento. Como dito, a obra de Alvino de Sá é marcada por um detido olhar que deságua na riqueza imensa do ser humano, e este olhar, por sua própria natureza, jamais se contenta com unilateralidades. Seu olhar é, portanto, aquele do clínico, capaz de, por sua presença, trazer luzes completamente novas àqueles – imensa maioria de nós – presos às engrenagens duras da técnica jurídica, e que só permitem abrir uma pequena fresta da janela aos ventos da crítica sociológica. Pensamentos como o de Alvino de Sá (ou também o de Álvaro Pires) têm o estranho poder de cativar e perturbar: cativam porque são novos a nossas mentes viciadas; perturbam porque nos forçam a abandonar o conforto de nossas certezas cristalizadas.
Mais do que ocasião de enorme tristeza, o falecimento de Alvino de Sá deve ser, também, tema de debate acadêmico – e por isso é tratado neste Editorial. A sombra de sua ausência já se desenha no horizonte. Não há, no Brasil, expoente maior da Criminologia Clínica. Contemplamos, diante de nós, o risco imenso de, nas décadas vindouras, serem as construções acadêmicas sobre Execução Penal reduzidas a dois pilares: técnica jurídica e crítica sociológica. Por valiosos que sejam, não bastam. A Criminologia Clínica, magistralmente desenvolvida por Alvino de Sá, tem um olhar completamente seu, pois se volta ao sujeito, ao ser humano. Apenas este olhar é capaz de adicionar uma dimensão cada vez mais esquecida: a dimensão da profundidade, fundada na insondável riqueza da alma humana.
A sombra da ausência de Alvino de Sá obscurece outros pensadores de primeira grandeza que, pelo trabalho do próprio Alvino e de mestres e doutores por ele orientados, foram trazidos à Academia em tempos recentes. Pelas mãos da Criminologia Clínica, os debates acadêmicos sobre Execução Penal têm sido enriquecidos por ideias grandiosas como as de Viktor Frankl, Sigmund Freud, Melanie Klein, Carl Rogers, Carl Gustav Jung, Erich Neumann, Marie-Louise Von Franz, David Bohm, Jacques Lacan, Donald Winnicot, Jean Piaget, Lawrence Kohlberg ou René Girard, para citar apenas alguns poucos nomes. À já imensa tristeza do luto se soma a tristeza de, prospectivamente, imaginarmos novos rumos acadêmicos que ignorem tão ricos autores, e outros tantos mais.
Quanto mais acaloradas, mais polarizadas e mais disseminadas as contendas contemporâneas, maior o risco de esquecermos por completo o sujeito humano que, em toda a sua complexa riqueza, sempre estará ao centro de qualquer discussão sobre questões criminais e carcerárias. E, justamente nestes momentos de paroxismo da insanidade, talvez seja à Clínica que devamos recorrer, pois a ela incumbe tornar-nos (ao menos um pouco) mais sãos – como, ao longo de sua bonita história de vida, Alvino Augusto de Sá tornou a todos os que tiveram a sorte de com ele conviver.
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