Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
O debate recente sobre os 19 pontos vetados pelo presidente da República na Lei 13.869/2019, mais conhecida como “nova” Lei de Abuso de Autoridade, trouxe à tona a discussão sobre direito de defesa, combate à corrupção, presunção de inocência e devido processo legal.
É louvável a preocupação do legislador em atualizar a defasada Lei de Abuso de Autoridade, que é de 1965. A antiga lei, editada durante os “anos de chumbo” da Ditadura Civil-Militar brasileira, vem sendo criticada desde o início, eis que se voltava, na verdade, à proteção de autoridades que incorressem em abuso, mediante a cominação de penas muito inferiores àquelas cominadas a fatos análogos praticados por particulares. A nova lei define os crimes de abuso de autoridade e pretende alterar esse estado de coisas, violador da proporcionalidade e da igualdade, definindo de forma mais objetiva os crimes e cominando penas mais consentâneas com a gravidade dos delitos cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído (art. 1º).
É inegável que a discussão se dá em boa hora, pois os vazamentos do site The Intercept mostram abusos reiterados praticados por membros do Ministério Público Federal e Magistratura, subvertendo o sistema acusatório e o devido processo legal.
Todavia, em um cenário de inchaço legislativo penal, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais tem a obrigação de buscar elementos para a reflexão e racionalização do debate.
Mais uma vez, assiste-se a uma polarização da política nacional. De um lado, alguns magistrados, promotores e policiais se contrapõem à novel Lei, alegando cerceamento de suas atividades profissionais. De outro, uma parcela de profissionais do Direito aguarda a atualização e aprimoramento da antiga Lei de 1965.
Por que, afinal, seria oportuna, hoje, a nova Lei de Abuso de Autoridade?
Quando o legislador constitucional inseriu o artigo 133 na Carta Magna, reconhecendo que o exercício da advocacia é fundamental para a realização da Justiça, quem ganhou foi a própria cidadania. Em um país democrático, o agente público que comete abusos, por óbvio, deve ser responsabilizado. Observamos uma tendência dos meios de comunicação de desprestigiar a figura do defensor, de desacreditá-lo, fato que colabora para o déficit democrático do sistema de Justiça. Quando essa tendência se transforma em desrespeito a direitos, como a violação de escritórios de advocacia, impedimento de comunicação reservada do defensor com a pessoa presa ou, ainda, quando é dada voz de prisão ao advogado no exercício do seu mister, sem fundamento jurídico válido, quem perde é a própria cidadania. Tais violações são preocupantes e geram um desequilíbrio no processo democrático.
Porém, a expectativa de que uma lei penal vá promover a democratização do sistema de Justiça, contudo, não deixa de afigurar-se como ilusória. Diante de uma reflexão mais aprofundada sobre o tema, soa ingênuo apostarmos que mais uma medida simbólica, como tantas outras, seria capaz de mudar esse déficit democrático do nosso sistema de Justiça. A reforma processual capaz de retirar das autoridades judiciárias poderes absolutos e instituir, finalmente, o sistema acusatório no processo penal brasileiro, retirando sua matriz inquisitorial, perpassa por questões mais complexas e a mudança de toda uma cultura jurídica.
Ainda que se promova com rigor a criminalização primária de atos de abuso de autoridade, sabe-se que o Direito Penal não é instrumento hábil ao enfrentamento dos problemas estruturais que marcam as práticas do sistema de justiça brasileiro.
É bastante previsível que os dispositivos incriminadores apenas se abatam contra indivíduos dos estratos mais baixos do serviço público, ou contra juízes e promotores que não gozem de cobertura política suficiente no interior de suas instituições, que os protejam contra as tentativas de criminalização secundária com base na nova lei. Como qualquer lei penal, não há como se desconsiderar que sua aplicação se dará de forma essencialmente seletiva.
Nesse sentido, as formas de criminalização da dita “cifra dourada”, visando à penalização de atos dos poderosos, provavelmente se converterá em medida meramente simbólica, conclusão que se extrai das recentes experiências de movimentação da máquina penal contra indivíduos que não se enquadram no estereótipo delinquencial clássico. Por outro lado, não se pode desconsiderar a hipótese de que a criminalização do abuso de autoridade seja utilizada como instrumento de lawfare (criminalização por falta de cobertura), promovendo a persecução apenas daquelas autoridades que não demonstrem adesão ideológica ao projeto autoritário de encarceramento em massa encampado pela cúpula do Poder Judiciário brasileiro e pelo Ministério Público.
A democratização do sistema de Justiça, assim, demanda muito mais que a edição de uma norma penal. Há que se repensar a seleção dos magistrados e promotores, a ausência de participação social e de ouvidorias externas nessas instituições, a implementação de cotas nos concursos de ingresso e promoção, o estabelecimento de formas de responsabilização político-criminal e publicização das decisões etc.(1)
O IBCCRIM sedia a Plataforma Justa, que se propõe a coletar dados e avaliar as distorções havidas no sistema de Justiça no que diz respeito à representatividade, ao orçamento e ao teor das decisões. Nesse diapasão, a partir dos dados de 2018, a Plataforma identificou que, nos Tribunais Estaduais, a probabilidade de um homem branco tornar-se desembargador é 33,5 vezes maior que a possibilidade de uma mulher negra alçar a esse cargo. Dentre os juízes de primeira instância, 48,3% são homens brancos e 31,8% são mulheres brancas, sendo que apenas 11,8% dos juízes declaram-se como homens negros e 6,6% das juízas são mulheres negras.
No que toca aos dados orçamentários do sistema de justiça, a situação de falta de transparência e distorção acerca de prioridades também é evidente. Tomando-se por exemplo o Estado de São Paulo, verificou-se que, em 2018, 5,14% de todo o orçamento estadual foi destinado ao Tribunal de Justiça, sendo um montante superior à soma do orçamento destinado às áreas de assistência social, habitação, saneamento, direitos e cidadania, trabalho, ciência e tecnologia, ambiental, comunicação, esportes e energia.(2) Do orçamento do TJSP, 79% foi destinado exclusivamente ao pagamento de pessoal. Nesse diapasão, a plataforma revela que as remunerações de juízes e promotores no Estado superam em muito, na média, o teto constitucional.
Assim, o déficit democrático do sistema de Justiça é um problema muito mais complexo e que demanda propostas estruturais mais amplas do que a criminalização simbólica de algumas condutas, no sentido de desconstituição da cultura que alça as “castas judiciárias” a um estamento acima da regência da lei.
Se as investidas anteriores de endurecimento penal com vistas à mudança da cultura jurídica no país não foram bem-sucedidas, a repetição dessa fórmula não deverá contribuir significativamente para uma mudança estrutural e efetivação do sistema processual penal acusatório no país. Por outro lado, não se pode negar que o debate sobre as mais diversas formas de abuso de autoridade, ainda que pela via ilusória da edição de uma lei penal, aponta para o reconhecimento da lesividade desse tipo de conduta abusiva praticada por quem historicamente se comporta como se estivesse acima da lei. O reconhecimento da falta de controle das autoridades reforça o quanto precisa ser combatido o elitismo e o autoritarismo presentes sobretudo nas carreiras jurídicas, visando à efetivação de leis já existentes que protegem e garantem o respeito às prerrogativas profissionais e os direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs. A nova Lei de Abuso de Autoridade, assim, está muito longe de promover uma “revolução democrática da Justiça”, conforme preconizada por Boaventura de Souza Santos.(3) Contudo, o debate sobre a imposição de limites às autoridades e às práticas palacianas que marcam a cultura jurídica brasileira é urgente, o que se demonstra pela reação das corporações do sistema de Justiça contra o debate legislativo sobre o tema, no afã da manutenção de seus privilégios e de sua recusa em submeter-se à regência do ordenamento jurídico.
Notas
(1) Dentre essas medidas, a criação de ouvidorias externas do sistema de justiça e a criação de responsabilidade político-criminal para a criminalização de novas condutas encontram-se propostas nas “16 medidas contra o encarceramento em massa” do Ibccrim, Pastoral Carcerária, AJD e CEDD/UnB. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/docs/2017/16MEDIDAS_Caderno.pdf.
(2) Os dados podem ser conferidos em justa.org.br.
(3) Santos, Boaventura de Souza. Por uma revolução democrática da Justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
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