INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 321 - Agosto/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Editorial

40 anos da Anistia Política: relembrar é defender a Democracia

Há quarenta anos, foi aprovada pelo Congresso Nacional a anistia parcial e restrita (Lei 6.863/79), tendo sido sancionada pelo então último ditador militar, João Baptista Figueiredo.

No dia 28 de agosto de 1979, data da votação do projeto de lei, familiares de presos políticos, de desaparecidos, ativistas de direitos humanos e representantes dos Comitês Brasileiros de Anistia (CBAs) lotaram as galerias do Congresso Nacional com cartazes contendo os nomes e fotos de seus parentes, militantes da oposição, desaparecidos forçados, com dizeres em defesa da anistia ampla, geral e irrestrita. Naquela ocasião, manifestaram-se vigorosamente contra a forma restrita e parcial de anistia proposta pelo governo. “Não queremos liberdade pela metade!”, é o que apontava um cartaz que esteve todo o tempo bem à frente da galeria.

A “anistia pela metade” foi assim chamada porque concedia a liberdade para uma parte da oposição. Os militantes da luta armadasóforam libertados algum tempo depois, após alterações na Lei de Segurança Nacional que reduziram as penalidades e possibilitaram a liberdade condicional. Durante a votação, os presos políticos do Rio de Janeiro fizeram greve de fome em um esforço de conseguir uma lei ampla.

A anistia, portanto, não foi ampla, geral e irrestrita, como os familiares e grupos de direitos humanos pleiteavam.

Também é importante mencionar que a Lei de Anistia nãose estendeu aos torturadores, já que seria juridicamente impossível ao Estado a concessão de uma “autoanistia”. Porém, passados mais de trinta anos, em abril de 2010, ao julgar a ADPF 153, ajuizada pela OAB, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu que referida lei se aplicava também aos torturadores, contrariando assim os tratados e obrigações de proteção aos direitos humanos assumidos pelo Brasil. Concederam explicitamente a autoanistia. Só não votaram a favor da anistia aos torturadores os Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto.

Para Lewandowski, mesmo que o Brasil estivesse enfrentando uma guerra, “os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais concernentes ao direito humanitário, assumidos pelo Brasil desde o início do século passado, pelo menos”.(1)

O ministro Ayres Britto entendeu, em seu voto, que a norma não tem caráter amplo, geral e irrestrito. Para ele, crimes hediondos e equiparados a estes, como tortura e estupro, não foram anistiados pela lei de 1979.

Ainda no ano de 2010, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA por não localizar os restos mortais de militantes políticos da Guerrilha do Araguaia, não esclarecer sobre as circunstâncias em que se deram tais fatos, nem responsabilizar criminalmente os agentes do Estado que cometeram tais crimes. A decisão tomada por aquela Corte coloca como dever do Estado a apuração dos crimes praticados durante a ditadura e a responsabilização criminal dos agentes estatais. Como a lei da anistia de 1979 poderia ser um empecilho para responsabilizar criminalmente aqueles agentes públicos, o Estado brasileiro, via STF, tratou de estender os efeitos da lei aos torturadores, protegendo-os da responsabilização penal.

Ainda assim, mesmo diante dos caminhos interpretativos tortuosos e de seu caráter parcial, a anistia de 1979 significou um marco histórico na retomada da democracia. Muitos brasileiros puderam retomar o convívio em sociedade, além de ter sido autorizada a reorganização partidária.

A anistia é uma tradição da política brasileira desde os tempos coloniais. Depois de dura repressão, são anistiadas as pessoas que sobreviveram. O instituto ganha status constitucional com a Constituição outorgada de 1824.

Jornalistas como Alceu Amoroso Lima e Carlos Heitor Cony chegaram a mencionar a necessidade de anistia logo em seguida ao golpe de 1964, como forma de apaziguar o país.

Criada em 1967, a Frente Ampla, que seria uma articulação encabeçada por políticos cassados e que ocuparam postos da Presidência da República, como João Goulart e Juscelino Kubitscheck, e pelo ex-governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, defendeu uma “anistia geral” como medida fundamental para que o país voltasse à normalidade democrática. Os familiares de presos políticos também defendiam a anistia.

Em junho de 1971, o grupo originário do MDB – parlamentares mais combativos na luta contra a ditadura – havia incluído a defesa da anistia aos perseguidos políticos na “Carta de Recife”, aprovada pelo partido.

Os jornais estavam sob forte censura ou colaboravam com a ditadura. No exterior, as denúncias de violação dos direitos humanos no país ganharam força. A contribuição dos grupos de exilados e de líderes religiosos foi decisiva para embasar a opinião pública externa no sentido do fim da ditadura e de uma anistia a todas as pessoas perseguidas por motivos políticos.

A ditadura tratava essas denúncias como “mentirosas, farsas criadas por aqueles que não ‘amavam’ o Brasil. Eram tempos de campanhas como: Brasil: ame-o ou deixe-o”. A causa da anistia e da investigação do desaparecimento de presos políticos movimentava os diversos setores democráticos na Europa e nos Estados Unidos. Entretanto, a tortura e o assassinato de opositores se mantinham como instrumentos de intimidação e coação usados pela repressão política.

Em setembro de 1973, uma iniciativa da oposição parlamentar impactou a política. Lançou-se a anticandidatura à Presidência da República, como forma de protesto. O líder da oposição parlamentar, Ulysses Guimarães, foi o “anticandidato”.

No Natal de 1974, Dom Paulo Evaristo Arns reuniu militantes, ex-presos políticos e familiares de desaparecidos. Falou da importância de organizar uma campanha em defesa da anistia.

Foram as mulheres as primeiras a levarem a bandeira da anistia para as ruas brasileiras. A notícia foi dada no jornal alternativo “Opinião”, em sua edição de 30/05/1975, e reproduzida em outros jornais como o “Brasil Mulher”. “[...] um grupo de mulheres iniciara um amplo movimento pela anistia aos presos políticos do Brasil. Falando ao jornal, as mulheres – profissionais liberais, universitárias, mães, trabalhadoras – explicavam ter sido esta a forma mais consequente que encontraram ‘para comemorar, trabalhando, o Ano Internacional da Mulher’, instituído pela ONU”.(2)

Cria-se, então, a campanha nacional pela Anistia, coordenada pelo Movimento Feminino pela Anistia, liderado pela advogada Therezinha Zerbine. A primeira ação é a apresentação do “Manifesto da Mulher Brasileira em favor da Anistia”, cujo texto termina conclamando “[...] todas as mulheres, no sentido de se unirem a este movimento, procurando o apoio de todos quantos se identifiquem com a ideia da necessidade imperiosa da anistia, tendo em vista um dos objetivos nacionais: a Unidade da Nação”.

No dia 14 de fevereiro de 1978, na sede da ABI – Associação Brasileira da Imprensa – foi inaugurado o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), o que constituiu um significativo avanço político ao reunir os diversos movimentos que se espalhavam pelo Brasil. A palavra de ordem contida no Manifesto lançado era: “Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita, por ser esta a única que abrange todas as punições originadas dos atos de exceção, possibilitando a libertação dos presos, a volta dos banidos e exilados, a reconquista dos direitos dos cassados e a revogação das punições arbitrárias”. Merece destaque que, entre os fundadores do CBA, encontrava-se o general Peri Bevilacqua (1899-1990), ex-ministro do Superior Tribunal Militar, cassado em 1969, pelo AI-5, por denunciar as arbitrariedades ocorridas no aparato repressivo do Estado. Os CBA se espalharam pelos estados brasileiros e também pelo exterior. Cresceram as manifestações de rua, com milhares de pessoas em defesa da anistia.

Após a aprovação da lei de anistia, houve o retorno ao Brasil de muitos exilados, dentre eles líderes de esquerda tais como Brizola, Miguel Arraes e Luis Carlos Prestes.

No entanto, uma brasileira ainda não havia voltado: Flávia Schilling, que estava presa no Uruguai. Intensificou-se então a mobilização para trazer Flávia de volta. O 2º. Congresso da Mulher Paulista, ocorrido em 8 de março de 1980, aprovou moção de apoio à Flávia, que foi entregue ao consulado do Uruguai. O CBA de São Paulo confeccionou camisetas com os dizeres: “Flávia, seu lugar é aqui!”

Flávia Schilling, uma das últimas pessoas a retornar do exílio, em 07/04/1980, foi recebida com uma calorosa participação de mulheres, que carregavam flores de girassol. Mais tarde ela escreveria em seuMemorial, apresentado para o Concurso de Livre-Docência na Área de Conhecimento de Sociologia da Educação, da USP:

Tempos realmente difíceis, com a ditadura e a repressão ainda presentes no cotidiano. Tempos confusos, de transição (que nunca se completava), de dúvidas e solidão. Os que chegavam, os exilados, com aquela energia indescritível que ainda possuíam, tentavam se situar em um país totalmente outro. Que país é este? Como entrar no país? Quem é quem? O que vale, o que não vale mais? Foram tempos de luta, também. Muitos, como nós, chegamos apenas com as malas, com pouca coisa ou coisa nenhuma. Cheguei, literalmente, com a roupa do corpo. Foi o grande desafio de refazer a vida ou fazer a vida.”(Memorial, USP)

Assim voltaram quase todos, com exceção dos desaparecidos políticos, quenãoretornaram sequer na forma de atestado de óbito. A pergunta que não cala – “onde estão os desaparecidos políticos?” – será levada como um fantasma pelas gerações futuras.

Ainda precisamos muito da Anistia e de toda aquela mobilização. Lembrar os 40 anos da Anistia é conclamar pela defesa da nossa frágil e incompleta democracia, pela rememoração daquelas e daqueles que lutaram e lutam pela sua construção.

Notas

(1) Disponível em:
<www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idconteudo= 125501>. Acesso em: 12 jul. 2019.

(2) Jornal Brasil Mulher, 09 out. 1975. p. 8.



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