INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 320 - Julho/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Editorial

Dos massacres e dos lucros: a lógica privatista, a irresponsabilidade judicial e a banalidade do extermínio nas prisões

O início de 2017 trouxe aos olhos do país a lembrança das condições aviltantes a que são submetidas as pessoas presas. Somente em janeiro daquele ano, 133 presos foram mortos em rebeliões ocorridas em Roraima, Rio Grande do Norte e Amazonas. Neste último Estado, foram 56 mortos em uma rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus.

Na oportunidade, as autoridades do Poder Executivo imputaram às próprias vítimas a culpa pela tragédia, pois supostamente eram partícipes de uma guerra entre facções. Por sua vez, representantes do Poder Judiciário atribuíram o problema exclusivamente à gestão dos presídios pelos governos estaduais, como mencionou o Editorial do Boletim nº 291, em fevereiro daquele ano.

Pouco mais de dois anos depois, a tragédia se repetiu em Manaus: em maio deste ano, mais 55 pessoas foram assassinadas em dois dias no sistema prisional amazonense. Uma vez mais, a política criminal e penitenciária brasileira levou morte, dor e sofrimento a centenas de familiares e amigos dos assassinados. Contudo, não é possível dizer que fomos pegos de surpresa.

Com efeito, a tragédia de 2017 trouxe alertas, mas não aprendizados. As matrizes políticas da tragédia de 2019 consistem na intensificação daquelas mesmas que determinaram o massacre anterior, há dois anos: encarceramento em massa de jovens pobres e negros, superlotação prisional, abuso na decretação de prisões preventivas e violação dos direitos humanos mais básicos aos presos e seus familiares. No caso amazonense, ainda há um fator determinante que revela a coisificação dos corpos sujeitos à prisão: o complexo prisional no qual a tragédia se repetiu é gerido por uma entidade privada.

Mesmo após as consolidadas reflexões sobre o papel da privatização dos presídios no violento e racista processo de encarceramento em massa estadunidense, o discurso que traduz a importação do modelo de presídios privados para o Brasil ganha força, especialmente em período eleitoral.

Para além do discurso, no caso amazonense, há um fiel exemplo prático do modelo almejado por muitos. Mais caro que o modelo público, sua ineficiência se revela em números de mortes e nos constantes relatos de maus tratos. Mesmo após mais de cinco dezenas de mortos em 2017, a empresa responsável pela gestão do Compaj teve o contrato renovado pelo governo. Pouco mais de dois anos depois, igualmente renovada restou a tragédia, com a diferença de apenas uma vida entre as duas ocorrências: 56 em 2017, 55 em 2019.

A única renovação verdadeiramente cabível diante da barbárie civilizatória representada pelas dezenas de mortes em Manaus é aquela realizada nesse mesmo espaço editorial em fevereiro de 2017, ao concluir que “os movimentos reformistas pelo desencarceramento soçobraram pelo fato de que o problema não está apenas na produção legislativa ou no déficit de políticas públicas, mas também na postura dos juízes, imersos em uma cultura classista, ilegalista e autoritária. Alterações legais e medidas político-criminais pouco valem quando os juízes atuam como combatentes de uma suposta guerra contra a criminalidade, sem qualquer limite ou baliza legal.”

O papel do Poder Judiciário no processo de encarceramento em massa e na barbárie representadas pelo cotidiano prisional brasileiro não encontra mais esconderijo em cínicas transferências de responsabilidade. Não bastasse o papel constitucional de garantidor de direitos fundamentais, na Lei de Execução Penal há três funções expressas do juiz que invalidam qualquer discurso que permita que ele lave suas mãos: a) zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança; b) inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade; c) interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta Lei (art. 66, VI, VII e VIII).

A tragédia anunciada e repetida, assim, decorre da esquiva à assunção de responsabilidade judicial no derramamento de sangue, ao lado da insistência em uma política privatista evidentemente fracassada que, ainda assim, pretende-se ampliar para o restante do país. A privatização de presídios se mostra, no exemplo concreto de Manaus, uma falsa alternativa à crise prisional, pois constitui um elemento de intensificação dos problemas que levaram ao quadro de barbárie. O lucro depende de mais presos e penas, cuja execução deve ser a menos custosa possível. Os cortes que aumentam os lucros são os mesmos que condenam as vidas, descartáveis e matáveis.

Sob pena de repetição da tragédia a qualquer momento, é preciso investir em medidas que revertam a receita da barbárie. A persistência no caminho do encarceramento em massa, da busca lucrativa por mais corpos a gerir e da fuga de responsabilidade por parte das autoridades, à evidência, apenas reproduzirá indefinidamente os massacres, sob a cegueira deliberada e o silêncio conivente dos operadores do sistema penal.



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