Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
O instituto do indulto, inserido no texto constitucional originário como ato de competência privativa da Presidência da República, compõe o sistema de freios e contrapesos, que garante a harmonia entre os Poderes. Trata-se de instrumento pelo qual o Poder Executivo procura corrigir distorções perpetradas pelo sistema punitivo, levando em conta o hiperencarceramento, o excessivo rigor judiciário e as condições materiais desumanas das prisões, já declaradas como estado de coisas inconstitucional.
Dunker aponta que o “poder de perdoar” conta com registros na lei mosaica e nos ordenamentos clássicos greco-romanos(1). O instituto atravessou a Idade Média e os Estados Absolutistas, chegando aos sistemas ocidentais modernos e, sendo assim, recepcionado pela ordem constitucional de 1988 no Brasil. Tradicionalmente, seguindo-se o costume francês, o indulto coletivo passou a ser concedido no período natalino. Em 2018, contudo, pela primeira vez desde a redemocratização formal brasileira, a Presidência da República optou por não editar um decreto de indulto(2).
A morte do indulto, entretanto, já há algum tempo vem sendo tramada pelos artífices da “nova era”, em que os discursos punitivistas irracionais sobre o tema da punição ocuparam a cúpula dos Poderes constituídos.
Nesse sentido, menciona-se a heterodoxa liminar concedida em dezembro de 2017 pela Ministra Cármen Lúcia na ADC n. 5.874/DF, em que a Presidência do Supremo suspendeu parcialmente a vigência do Decreto n. 9.246/2017. Pela decisão da então Presidente do STF, dentre outros pontos, ficou suspensa a possibilidade de declaração de indulto nos casos de crimes sem violência ou grave ameaça. A irracionalidade da decisão judicial ficou evidente, na medida em que, visando os “presos da operação lava-jato”, suspendeu-se o indulto para os crimes não violentos em geral, como furtos e receptações, mantendo-se a vigência do decreto apenas para crimes com violência ou grave ameaça. Essa evidente inversão de valores demonstra como a excessiva politização judicial produz decisões atabalhoadas, prolatadas no afogadilho a fim de fazer jus ao clamor midiático(3).
Findo o recesso judiciário, no início de 2018, os autos da ADI foram à conclusão ao seu relator. Assim, em decisão igualmente inédita, o Min. Roberto Barroso reviu a liminar concedida, reescrevendo o decreto de indulto, aumentando lapsos aquisitivos e retirando eficácia de outros artigos. Na prática forense, grande parte dos juízes de piso passou a negar a declaração de indulto mesmo nas hipóteses que não haviam sido atingidas pela decisão do STF, alegando pendência judicial sobre a validade do decreto.
Em novembro de 2018, a ADI em comento foi submetida a julgamento pelo Pleno do STF. Na sessão de julgamento, seis Ministros votaram pela improcedência da ação e pelo consequente restabelecimento da vigência do decreto original, sob o fundamento de que o Judiciário não tem autorização para usurpar competência privativa de outro Poder. Dessarte, a maioria dos Ministros entendeu que a liminar que suspendeu o decreto era inconstitucional. Ainda assim, surpreendentemente, a medida cautelar que modulou seus efeitos permaneceu vigente, já que o julgamento foi interrompido, mesmo com maioria já formada em sentido contrário, por força de pedido de vista do Min. Luiz Fux. Foi aventada pelo Pleno a cassação da medida cautelar, mas o incidente também não foi julgado, em virtude de pedido de vista do Min. Dias Toffoli. Nesse episódio, ficou claro o modus operandi de parte do Judiciário em valer-se de manobras regimentais para impedir a prestação jurisdicional quando a decisão for politicamente desagradável ao sentimento punitivista, que parece ter sequestrado as agendas de boa parte do Tribunal.
Mais recentemente, em 19 de dezembro de 2018, véspera do recesso judiciário, o TRF da 4ª Região, em decisão que gerou perplexidade na comunidade jurídica, declarou a inconstitucionalidade do próprio instituto do indulto coletivo, afirmando que a Presidência estaria proibida de editar os decretos de indulto, salvo para favorecer pessoa determinada, na modalidade do indulto individual ou graça. A decisão, que afronta norma constitucional originária, deu-se a partir de argumentos pouco jurídicos, relativos ao mantra de “combate à impunidade” (algo que configura como evidente contrassenso no terceiro país que mais encarcera no mundo).
Enquanto boa parte dos discursos jurídicos se pauta pelo clamor gerado pela criminalidade do colarinho branco, cujo contingente é insignificante no contexto da população prisional, o número de presos segue em crescimento vertiginoso. O resultado dos ataques ao indulto é o incremento do encarceramento de pessoas condenadas sobretudo pelos delitos mais leves(4).
O custo dessa opção ideológica é o enfraquecimento do texto constitucional, vilipendiado por decisões sui generis, acompanhado do agravamento das violações de direitos dos presos. No mais, a aposta no encarceramento em massa, ora aplaudido pelos Poderes Constituídos, fortalece as facções prisionais e agrava a insegurança pública que sobeja no território nacional. Fatos como os crimes de maio de 2006, em São Paulo, os massacres em presídios do Norte e do Nordeste do país no início de 2017 e a atual situação no Ceará, onde o domínio das facções no sistema prisional vem ocasionando ataques por todo o Estado, são frutos dessa ideologia, inspirada pela fantasia higienista que agora ascendeu ao poder de forma inegavelmente ostensiva. A insistência nesse equívoco deverá apresentar sua fatura integral em breve, apontando para um colapso das instituições e para o agravamento do contingente de miseráveis, lançados à marginalidade depois de períodos longos de aprisionamento.
Diante do recrudescimento dessa política de irracionalidade punitiva, faz-se imprescindível a união de todos e todas que se propõem à defesa da Constituição Federal, sem sectarismos, no sentido de impedir os retrocessos que vêm tomando corpo. Àqueles e àquelas que acreditam no regime democrático constitucional cabem apenas a escolha entre manifestar-se e incidir agora, ou esperar ser tarde demais.
Notas
(1) DukeR, William F. The President’s Power to Pardon: A Constitutional History, 18 Wm. & Mary L. Rev. 475 (1977), https://scholarship.law.wm.edu/wmlr/vol18/iss3/3.
(2) Recentemente, o Governo Federal sinalizou à imprensa que poderia editar um decreto de indulto humanitário, restrito a pessoas acometidas de doenças terminais ou deficiências físicas graves. Até o fechamento da presente edição deste Boletim, contudo, não houve a edição do decreto e, ainda que assim não fosse, um indulto meramente humanitário não atenderia à sua função político-criminal.
(3) Sobre essa decisão, cf. texto produzido à época pela diretoria do Ibccrim: SHECAIRA, Sérgio Salomão e SHIMIZU, Bruno. Para erro político-criminal não há perdão! O indulto natalino e a liminar da ministra Cármen Lúcia. In JOTA, 30.12.2017. disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/para-erro-politico-criminal-nao-ha-perdao-30122017.
(4) Os dados mais recentes do Infopen, de junho de 2016, demonstravam a existência de cerca de 73 mil pessoas presas por furto no Brasil, bem como a existência de cerca de 20 mil pessoas presas por receptação. O relatório ainda aponta a existência de mais de 150 mil pessoas presas por tráfico de drogas. Trata-se de exemplos de crimes desprovidos de violência, aos quais a lei e a jurisprudência dos Tribunais Superiores admitem a aplicação de penas alternativas ao encarceramento e que apenas poderiam ser geradoras de pena de prisão em circunstâncias excepcionais, como a reincidência ou a extrema gravidade do fato. Os números de aprisionamento por essas condutas, no entanto, demonstram uma resistência ao cumprimento da lei e das orientações jurisprudenciais superiores por parte dos juízes e Tribunais.
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