Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
Passados quase 15 anos da Reforma do Judiciário, com a aprovação da Emenda Constitucional 45/04, observam-se poucos avanços na universalização do acesso à justiça e na democratização da sua gestão. Ao contrário, a trajetória atual do Poder Judiciário é de crescente fechamento e intolerância contra vozes dissonantes.
Tamanha é a gravidade da situação que Tribunais de Justiça vêm, de forma gradual, relativizando prerrogativas essenciais da própria magistratura, como a “inamovibilidade”(1) e a “independência funcional”, que deveriam servir de garantias à pluralidade das decisões judiciais e contra a instrumentalização da atividade jurisdicional pelas elites togadas.
É exatamente sobre esse tema que versa a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5070, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal (STF), que questiona a Lei Complementar Estadual 1.208/2013, de São Paulo, que instituiu o Departamento Estadual de Execuções Criminais (DECRIM) e o Departamento Estadual de Inquéritos Policiais (DIPO), delegando ao Conselho Superior da Magistratura a livre designação e remoção dos juízes e juízas que atuam nesses órgãos jurisdicionais, com base em critérios frágeis, que, diga-se de passagem, sequer estão sendo respeitados, conforme representação subscrita pelo IBCCRIM e dirigida ao Conselho Nacional de Justiça. (2)
O IBCCRIM também atua como amicus curiae na ADI defendendo que a imparcialidade da Justiça é um direito fundamental diretamente relacionado à garantia do Juiz Natural, e que o Tribunal de Justiça paulista não poderia ter o poder de selecionar o perfil ideológico daqueles magistrados e magistradas que terão sob sua guarda as comportas do desumano sistema prisional do Estado.
Independência funcional
Nesse mesmo sentido, em 2017 o IBCCRIM, em conjunto com outras organizações parceiras, participou de audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando casos em que juízes e juízas, em razão de suas decisões ou manifestações em prol da garantia de direitos, tiveram violadas sua independência judicial e sua liberdade de expressão, em afronta a princípios constitucionais básico e à Convenção Interamericana de Direitos Humanos.(3)
Na oportunidade, foram destacados casos como o de um juiz afastado da jurisdição criminal da comarca de São Paulo, em 2013, por ato do Presidente do Tribunal de Justiça, em razão de pressão de membros do Ministério Público descontentes com a concessão “excessiva” de liberdade provisória pelo magistrado.
Em 2018, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou ao mesmo magistrado punição de censura pelo fato de ele não seguir o posicionamento majoritário da Corte. De fato, parece inevitável que um juiz ou uma juíza com orientação garantista destoe dos seus pares num país que recentemente alcançou a nada honrosa terceira posição entre as nações que mais encarceram no mundo, com mais de 720 mil pessoas privadas de liberdade, das quais 40% estão presas provisoriamente.
Também em São Paulo, no início de 2018, uma nova designação arbitrária para a Corregedoria do DIPO mudou radicalmente o perfil dos magistrados e magistradas responsáveis pela Audiência de Custódia, resultando em um aumento de 90%(4) na manutenção das prisões provisórias, em comparação com índices do mesmo período, em 2017.
Julgador e parte
Outro fato emblemático nessa espiral de encastelamento e arbítrio ocorreu em uma ação indenizatória movida pela Defensoria Pública de São Paulo, em benefício de uma pessoa presa ilegalmente por erro judiciário, e que tinha em seu polo passivo tanto o Estado quanto o juiz responsável pela prisão. Ocorre que, no curso do processo, o próprio Tribunal de Justiça, que eventualmente julgaria os recursos do caso, habilitou-se como amicus curiae na ação para defender a “independência” do magistrado.
Para além do absurdo de termos um Tribunal de Justiça como réu, julgador e terceiro interessado em uma única ação, destaca-se que todas as organizações da sociedade civil, entre elas o IBCCRIM, que solicitaram participação no caso na qualidade de amicus curiae tiveram sua habilitação negada,(5) invertendo completamente a lógica desse instituto jurídico de participação social.
E, concluindo com mais um exemplo da flexibilidade argumentativa do Judiciário quanto à independência funcional e à participação social na construção dos seus julgados, recentemente, a mesma Defensoria Pública teve seu pedido de habilitação como amicus curiae negado no Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade do Tribunal de Justiça de São Paulo, em que se discutia a Lei 13.654/2018, que impacta diversas sanções condenatórias em concreto e, por consequência, tem efeito no tempo da prisão suportado pelas pessoas.
No STF, as diversas ações sobre “auxílio moradia” também carregam decisões denegatórias dos pedidos de habilitação de organizações da sociedade civil. Em ambos os casos, as negativas são fundamentadas em argumentos genéricos e subjetivos de não representatividade dos pleiteantes. Tudo isso enquanto organizações de classe compostas pela própria magistratura foram aceitas para atuar nas ações.
Seria possível questionar se os interesses corporativistas têm mais chance de sucesso nos pedidos de habilitação como amicus nas cortes do que “as vozes das ruas”, tantas vezes invocadas por julgadores em seus discursos. Inquestionável é que a reiteração e o avanço de decisões públicas moduladas conforme interesses específicos de manutenção seletiva de independência funcional resultam na reconstrução dos antigos muros de separação entre o Judiciário (que é um Poder Público), o interesse social e o direito de participação.
Notas
(1) Princípio pelo qual o cargo de lotação de um membro de carreira não pode ser alterado sem ser por vontade dele próprio ou em situações excepcionais e fundamentadas.
(2)Vide: <https://www.ibccrim.org.br/noticia/14308-Em-Representacao-ao-CNJ-IBCCRIM-Defensoria-de-SP-e-Pastoral-Carceraria-pedem-revisao-de-nomeacoes-em-Departamento-do-Tribunal-de-Justica-paulista>.
(3)Vide: <https://www.ibccrim.org.br/noticia/14224-Violacoes-a-liberdade-de-expressao-e-a-independencia-funcional-de-magistrados-brasileiros-serao-denunciadas-na-OEA>.
(4)Vide: <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/01/11/prisao-preventiva-de-90-das-prisoes-em-flagrante-conta-atinge-ares-de-escandalo/>.(5) Vide: <https://www.ibccrim.org.br/noticia/14378-Nota-Publica-organizacoes-denunciam-Tribunal-de-Justica-por-atuar-sem-imparcialidade-como-julgador-e-parte>.
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