Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
O julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (HC 152.752) atraiu a atenção do público para uma questão lateral, mas de extrema importância para a jurisdição constitucional: o poder de definir a agenda do STF.
O habeas corpus em questão discutia a tese jurídica da execução provisória da pena antes do trânsito em julgado. Foi protocolado em fevereiro de 2018 e julgado em abril de 2018, gerando efeitos exclusivamente para o ex-presidente.
Contudo, a mesma importantíssima questão jurídica já era objeto de duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs 43 e 44), protocoladas em maio de 2016 e aguardando julgamento, até agora, desde dezembro de 2017. Por serem ações de controle concentrado de constitucionalidade, com eficácia erga omnes e efeito vinculante (CF, art. 102, §3º), a decisão tomada em seu julgamento valeria para o ex-presidente Lula e para todos os outros cidadãos e cidadãs que se encontrassem na mesma situação jurídica.
A decisão de julgar o caso particular, em detrimento do caso geral que o antecedia em quase dois anos partiu da pessoa que tem poder para definir o que o Supremo julga e (tão importante quanto) o que não julga: a presidente do STF, ministra Carmen Lúcia.
A decisão unilateral de não colocar em votação as ações cujo resultado afetaria não só o ex-presidente, mas todos e todas que podem vir a cumprir a chamada execução penal provisória, preferindo julgar o caso individual, sem efeito vinculante, foi objeto de severa crítica do ministro Marco Aurélio Mello na sessão de 05 de abril passado: “Que isso fique nos anais do tribunal: vence a estratégia, o fato de Vossa Excelência não ter colocado em pauta as declaratórias de constitucionalidade”.
A indignação se justifica. Desde fevereiro de 2016, quando o STF julgou o HC 126.292, mas principalmente desde outubro de 2016, quando foram negadas as liminares nas ADCs 43 e 44, o Tribunal está dividido. Há ministros que concedem liminares para que não se inicie a execução antecipada da pena, enquanto outros fazem o oposto. Na 2ª Turma do Supremo a maioria é favorável a que se aguarde o trânsito em julgado (ou ao menos o julgamento pelo STJ), enquanto na 1ª Turma a maioria possui opinião diversa.
Deve-se insistir em que a conhecida questão jurídica é das mais graves, seja porque toca na interpretação da presunção de inocência, uma das mais importantes conquistas do processo penal brasileiro (com amplitude inédita no plano constitucional), seja porque atinge de frente a uma miríade de pessoas expostas ao inconstitucional cumprimento de execuções penais provisórias.
Ao evitar o julgamento das ações que poderiam dar um fim a essa incerteza “lotérica”, a presidente trouxe dois graves prejuízos à imagem do Supremo perante a sociedade. O primeiro é a sinalização de que casos de personalidades públicas serão privilegiados em detrimento de outros, cujo alcance em número de destinatários é continental como o país. Não havia ali urgência que justificasse essa escolha, privilegiando, de um lado, o individual e posterior face ao outro, geral e anterior. As ações de controle concentrado, se julgadas, alcançariam não só o ex-presidente Lula como também milhares de homens e mulheres que padecem da mesma incerteza jurídica sobre a interpretação constitucional que deve prevalecer.
O segundo (e mais grave) prejuízo é a suspeita de que o julgamento das ADCs foi propositalmente evitado por receio de que a tese defendida pela presidente fosse vencida. Afinal, a ministra Rosa Weber vinha dando sinais de que embora concordasse com a tese de que a execução deve aguardar o trânsito em julgado (votara assim no HC 126.292 e na liminar das ADCs 43 e 44), decidiria de forma diferente até que a questão fosse trazida ao plenário nas ações com eficácia erga omnes. Já nos casos individuais, como o do ex-presidente Lula, ela votaria segundo a maioria formada em 2016. Essa posição, criticada por muitos, teve como fundamento um assim chamado “princípio da colegialidade”.
Ora, ao aparentemente usar o poder presidencial para impedir que se julgassem as ações acerca da presunção de inocência (cuja urgência e relevância são indiscutíveis, o que justificaria inclusive à luz do regimento interno do STF, em seu artigo 170, § 3º), impediu que o Tribunal decidisse a respeito. Mesmo depois de reiterados pedidos das partes e de outros ministros, a ministra Carmen Lúcia esvaziou o tal sentido de colegialidade, tão enaltecido pela ministra Rosa Weber.
Decidir um caso individual, permitindo que prossiga a insegurança jurídica criada com o HC 126.292, também gera uma falta de isonomia decorrente da lotérica distribuição dos casos aos ministros do STF, na medida em que nem todos os Ministros que deferem liminares sobre o tema e as Turmas têm entendimento similar. Afeta matéria tão central a tantos brasileiros e brasileiras que dependem da fixação do termo inicial de cumprimento da pena. E não dignifica o STF. Ao contrário, apequena-o. Fazer isso por uma possível vontade pessoal de que a tese oposta prevaleça apenas piora a situação. Dá a impressão de que os ministros da mais alta Corte fazem “manobras processuais” para impedir que o mérito de um caso seja decidido.
A “manobra”, ou, nos termos do ministro Marco Aurélio, “estratégia” da presidente (o endereçamento da fala foi indubitável) não é novidade no STF, infelizmente.
O ministro Gilmar Mendes foi acusado de fazer o mesmo durante o julgamento da ADI 4650, que discutia financiamento de campanhas eleitorais. Seu pedido de vista, quando a maioria já estava formada, durou um ano e cinco meses, e impediu que a decisão surtisse efeitos na campanha eleitoral de 2014.
Já o ministro Luiz Fux, após conceder liminar na Ação Originária 1.773, em setembro de 2014, concedendo auxílio-moradia a juízes federais (e depois estendendo a toda a magistratura), somente liberou o processo para votação em dezembro de 2017. Segundo advogados da União ouvidos pelo site Consultor Jurídico,(1) a demora na votação gerou uma despesa de R$ 1 bilhão.
É certo que o alto número de casos que chegam ao STF exige que se tome uma decisão sobre relevância e urgência para se definir a pauta de julgamentos. Mas não é disso que se trata. A preferência por julgar o caso individual em detrimento do caso geral constitui, como se viu na decisão da presidente Carmen Lúcia nas ADCs 43 e 44, uso estratégico do poder.
É seguro dizer que sempre que a mesma questão constitucional surgir em demanda individual e objetiva de controle de constitucionalidade, todos os indicativos (bom senso, boa-fé, economia processual, tempo, exposição da Corte) é melhor se julgar a demanda que acarrete eficácia vinculante e efeitos erga omnes. Em questão da magnitude que tem a presunção de inocência então, nem se diga do quão certeiro e preservador da imagem do próprio STF teria sido haver julgado as ADCs, e não o HC. Em tempos de turbulência, tudo o que não se precisaria era trazer a crise, como se trouxe, para dentro do STF. A apontada estratégia, pois, funcionou mal, muito mal, para a Corte, seus ministros e, sobretudo, aos brasileiros.
Ministros do STF divergirem quanto a teses jurídicas é normal. Esperado, até. Discussões acaloradas não são a regra, mas podem ocorrer. Uma das teses é vencedora, as demais vencidas, e o órgão de cúpula segue seu trabalho. No entanto, quando as diferenças no campo da interpretação do Direito são evitadas por ministros por meio do que parece ser “manobra”, não se trata mais de uma questão jurídica. E sim de uma postura antirrepublicana e que fere a essência de um órgão colegiado.
Notas
(1) https://www.conjur.com.br/2017-dez-20/fux-libera-julgamento-plenario-liminar-auxilio-moradia
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