Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
Homenagear Marielle Franco é um ato político suprapartidário e necessário. Marielle, que, além de ter sido eleita vereadora, era uma mulher negra, de origem da comunidade da Maré, periferia das mais perseguidas pelas forças policiais no Rio de Janeiro, foi brutalmente assassinada na noite de 14 de março, no Rio de Janeiro, às vésperas de se completar o primeiro mês da intervenção federal militar no Estado. Ignorar a importância e a ligação direta entre esses acontecimentos é algo que só interessa a forças autoritárias e antidemocráticas.
Marielle criticava a intervenção federal. Fazia suas denúncias, aliás, há muito tempo, sobre todos os efeitos violentos que já se percebiam no Rio de Janeiro quando do envolvimento do Exército nas chamadas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que fundamentam o Decreto Presidencial 9.288, de 16 de fevereiro, aprovado pelo Congresso Nacional na sequência.
Pouco tempo depois da aprovação do Decreto, o IBCCRIM se manifestou, afirmando ter recebido “com surpresa e preocupação a decretação de intervenção federal na área de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro para ‘pôr termo a grave comprometimento à ordem pública’”.(1) Indicava, ainda, estar espantado e indignado com “a transformação do instrumento civil de intervenção em um ato de natureza militar”.
Ressaltava que iniciativas anteriores de envolvimento de forças militares na segurança pública no Rio de Janeiro haviam sido infelizes:“As operações militares de Garantia de Lei e Ordem executadas pelas Forças Armadas no Estado nos últimos anos não apresentaram até o momento relatórios e balanços de seus resultados. Ao contrário, são criticadas por organizações locais por terem degradado o ambiente civil das áreas ocupadas e contribuído para violações aos direitos humanos, além de custar milhões aos cofres públicos. Essas operações se dirigem a comunidades pobres, de maioria populacional negra, ou seja, com caráter discriminatório e seletivo. Sua eficácia para o desmantelamento do crime organizado e redução da violência nunca ficou comprovada”.
Para detalhar mais esse argumento, vale indicar que entre 2010 e 2017 foram realizadas 29 ações de GLO no Brasil. Só no Rio de Janeiro, contabilizando-se a partir de 2006, ocorreram 12, incluindo um período de 15 meses de ocupação militar no conjunto de favelas da Maré (abril/2014 a junho/2015). A convocação e presença dos militares no Rio de Janeiro se deu, entre outras ocasiões, na Conferência Eco92; na ocupação do Complexo do Alemão (dezembro/2010 a junho/2012), nos Jogos Pan-Americanos em 2007, na Copa do Mundo 2014 e nas Olimpíadas 2016. Em alguns desses casos, os indicadores criminais pioraram no período da ação de GLO.
Fazer uso de uma intervenção federal militar neste momento, portanto, não foi apenas espantoso, mas ineficaz, desnecessário, desproporcional e inconstitucional. Discorrendo sobre essas características da intervenção, foi produzida uma Representação, apresentada à Procuradoria Geral da República, pedindo que o Ministério Público Federal tome as providências necessárias junto ao Supremo Tribunal Federal para reconhecer tal inconstitucionalidade. O documento foi assinado por 12 organizações da sociedade civil, entre elas o IBCCRIM.(2)
É notório que a atual intervenção militar não passa de mais uma tentativa de repetir a necropolítica de segurança pública no Rio de Janeiro e em todo o país , com a falsa e desonesta expectativa de se obterem diferentes resultados. É mais uma iniciativa baseada na violência extrema e na guerra às drogas, que consiste na “guerra aos pobres”, ou seja, no extermínio da população negra, pobre e periférica.
Na noite em que Marielle foi executada, com quatro tiros na cabeça, foi aumentada a contagem de mortes de mulheres negras no Rio de Janeiro e no país. O Atlas da Violência de 2017(3) expôs que, de 2005 a 2015, a mortalidade de mulheres não negras caiu 7,4%, enquanto para as mulheres negras subiu 22%. Foi atingido também, de forma letal, o motorista de Marielle, Anderson Gomes. Afinal, foram mais duas vidas ceifadas para a conta do Rio de Janeiro e do Brasil.
O sacrifício de Marielle aumentou também a conta do silenciamento de vozes dissonantes à expansão da truculência, que nada tem de descontrolada. A Anistia Internacional(4) aponta que o Brasil é o país em que mais matam-se militantes de direitos humanos nas Américas.
É essencial que o caso de Marielle seja rigorosamente apurado e repercutido; que sua memória e o significado de sua luta sejam respeitados; que permaneça o sentimento de perplexidade e comoção por mais essa morte.
Porque são múltiplos os significados dessa execução, principalmente em um momento decisivo, da permanência de uma intervenção militar que pode levar o país a um patamar de excepcionalidade do qual não se sabe se é possível retornar.
Estamos à beira do abismo, com Marielle presente e todas e todos em alerta.
Notas
(1) Disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/noticia/14299-Nota-do-IBCCRIM-Comentarios-e-contrapropostas-a-intervencao-federal-no-Rio-de-Janeiro>.
(2) Leia-se o documento assinado também por Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC), Conectas Direitos Humanos, Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), Instituto de Estudos da Religião (ISER), Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Justiça Global, Movimento Mães de Maio e Redes da Maré. Disponível em: <https://goo.gl/moVxba>.
(3) Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/atlas-da-violencia-2017-negros-e-jovens-sao-as-maiores-vitimas>.
(4) Disponíveis em: <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2017/12/brasil-e-pais-das-americas-onde-mais-se-mata-defensores-de-direitos-humanos.html e https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/brasil-esta-entre-os-quatro-lideres-globais-em-homicidios-de-ativistas.shtml>.
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