INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 304 - Março/2018





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi

Conselho Editorial

Editorial

A hora e a vez da presunção de inocência

Desde 5 de outubro de 1988, a Carta Política garante que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, inciso LVII). Por mais de vinte anos após a promulgação da Constituição da República, prevalecia na jurisprudência brasileira a ideia de que a presunção constitucional de inocência vedaria o lançamento do réu no rol dos culpados, mas não impediria a execução penal provisória da sentença condenatória sujeita a recursos despidos de efeito suspensivo.

A despeito da clareza cristalina do texto constitucional, somente em 2009 a Suprema Corte passou a sufragar o entendimento de que a execução da sanção penal só pode ser levada a cabo após o esgotamento das possibilidades de modificação do veredito condenatório. A mudança de orientação assentou-se na ideia de que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar (HC 84.078 e 83.868), o que, de resto, deflui da literalidade do texto constitucional.

É bem verdade que, em 2011, o então presidente da Corte Suprema, Cesar Peluzo, a partir da avaliação de que “a causa principal dos atrasos dos processos no Brasil é a multiplicidade de recursos” (e não o mau funcionamento do sistema de justiça), apresentou proposta de emenda à Constituição, para autorizar a imediata execução das decisões judiciais, logo após o pronunciamento dos tribunais de segunda instância.(1)

Em 2016, o Pretório Excelso retrocedeu à interpretação anterior a 2009, para consagrar a tese de que a “execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência” (HC 126292). A fundamentação dos votos vencedores foi bastante diversificada, dissociando o conceito de presunção de inocência da literalidade de seus parâmetros constitucionais: esgotada a discussão acerca de fatos e provas após o duplo grau, não haveria justificativa para manutenção, enquanto pendente o julgamento de recursos extraordinários, das limitações impostas pelo princípio da presunção de inocência; o núcleo essencial do direito fundamental à presunção de inocência consistiria em impor o ônus da prova do crime à acusação, não condicionando a execução da pena ao trânsito em julgado; a culpabilidade dependeria da qualidade de imutabilidade da condenação, não a execução da sanção; a interpretação constitucional deve encontrar ressonância no meio social, sob pena de tornar-se disfuncional; a mudança de entendimento obstaria a interposição de recursos protelatórios, valorizando a jurisdição criminal ordinária, tornando mais igualitário o sistema punitivo e quebrando o paradigma da impunidade, entre outros argumentos.

A nova posição do STF foi saudada como um grande avanço civilizatório, um freio necessário às excessivas garantias próprias de um sistema jurídico obsoleto e ineficaz, na esteira da lamentável jurisprudência regressiva dos tribunais superiores, que vem restringindo o manejo do habeas corpus. Mais que isso, a possibilidade de execução provisória da pena seria a única opção compatível com o combate eficiente à criminalidade, em especial no que diz respeito aos delitos de colarinho branco. Não por acaso, entre as famigeradas “10 medidas do MPF contra a corrupção”, uma delas propõe a inclusão de um parágrafo único ao art. 96 da Constituição Federal, para que dele conste que “ao proferirem julgamento de mérito em matéria penal, os tribunais de apelação autorizarão, a pedido do Ministério Público, a execução provisória da  decisão penal condenatória, para todos os fins, ainda que na pendência de recurso extraordinário ou recurso especial”.

É bem verdade que a própria Suprema Corte, por intermédio de decisões monocráticas de alguns de seus Ministros (inclusive de quem formou a maioria), passou a conceder liminares impedindo a execução provisória da pena em nome da tutela da presunção constitucional de inocência. Coerência parece não ser uma qualidade do STF, ao menos nos dias de hoje: a mudança a respeito da execução provisória da pena ocorreu logo após o plenário da mais alta corte do país declarar o sistema penitenciário brasileiro, onde cada vaga é ocupada por duas pessoas,(2) um “estado de coisas inconstitucional”, caracterizado pela sistemática violação de direitos fundamentais em decorrência de deliberada omissão estatal (ADPF 347 MC).

O quadro de encarceramento em massa, no qual o Brasil ostenta a terceira maior população carcerária do planeta, com aproximadamente 750 mil presos, sendo 40% provisórios, com viés de alta, não foi levado em conta. A cegueira hermenêutica deliberada, que encarcera e condena usuários de drogas como se traficantes fossem, também foi ignorada. A recusa reiterada dos tribunais estaduais em afastar a incidência da hediondez nos casos de tráfico privilegiado, a despeito da orientação remansosa nesse sentido da própria Corte Suprema e do STJ (que cancelou súmula em sentido contrário para harmonizar seu entendimento ao do STF), foi, igualmente, desconsiderada, como se nada disso tivesse a ver com o disfuncional exercício da atividade jurisdicional.

Cumpre relembrar ao Judiciário a sua missão de garante da intangibilidade dos direitos fundamentais, mesmo e especialmente quando a maioria política se une para atacá-los. Nas palavras do magistrado paulista Marcelo Semer, “quando um juiz ouve a voz das ruas e silencia a da Constituição, ele destrói o Estado de Direito”. O respeito à Constituição engrandece a democracia e suas instituições.

Notas

(1) “PEC dos Recursos” é apresentada pelo presidente do STF e estará no III Pacto Republicano”, 21.3.11. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=174751>. Acesso em: 16 fev. 2018.

(2) Entre 2000 e 2016, a população prisional cresceu, em média, 7,3% ao ano, passando de 232 mil pessoas em 2000 para 726 mil pessoas privadas de liberdade em 2016, existindo um déficit de aproximadamente 360 mil vagas (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Atualização - Junho de 2016, p. 20. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2018.



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