INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 301 - Dezembro/2017





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi

Conselho Editorial

Editorial

Desafios e limites da independência judicial e o futuro da democracia

“Se nós, magistrados, estamos sofrendo assédios por decisões favoráveis ao trabalhador, o que se pode imaginar que sofrem esses trabalhadores todos os dias, em sua rotina?” Esse comentário foi feito pelo Juiz do Trabalho e Professor da Universidade de São Paulo Jorge Luiz Souto Maior ao vivo, em uma entrevista dada a uma rádio paulista, em meados de outubro.

O que faz um comentário de um juiz trabalhista no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais? Faz um alerta de que o tema da independência judicial pauta desafios profundos, controversos e centrais para o futuro do Estado Democrático de Direito.

Se, para a justiça especial do trabalho, é possível ver o potencial de abuso de poder e o tipo de declaração e jogo com a opinião pública praticados por magistrados, o que se poderá dizer dos impactos na seara criminal, onde se decide sobre a liberdade de pessoas presas em flagrante ou acusadas, em sua enorme maioria pobres, negras e periféricas?

Há situações concretas de perseguição, operadas por tribunais brasileiros, contra profissionais que decidiram ou se manifestaram contrariamente a correntes majoritárias pela aplicação do princípio da inocência e da prisão como medida excepcional, rigorosa e, muitas vezes, exagerada.

Em maio deste ano, por exemplo, o IBCCRIM, juntamente com Associação Juízes para a Democracia (AJD), Due Process of Law Foundation, Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), Artigo 19 e Conectas Direitos Humanos, solicitaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) a realização de uma audiência temática a fim de denunciar reiteradas tentativas de controle político e ideológico da atividade judicial e da livre manifestação de magistrados e magistradas.

Na audiência, as organizações criticaram a composição dos Departamentos Estaduais de Execuções Criminais e Departamentos Regionais de Inquéritos Policiais do Tribunal de Justiça de São Paulo, que é realizada a partir da livre nomeação e permiteque a alta cúpula do tribunal remova juízes e juízas que contrariem o interesse desejado e nomeie aqueles que se adaptem às suas expectativas.

Foram apresentados ainda alguns casos concretos de tentativa de censura a magistrados e magistradas garantistas: a abertura de processo administrativo ou disciplinar contra juízes e juízas que decidiram “em demasiado” (sic) pela soltura de custodiados, que absolveram sumariamente réus acusados da prática de crimes de bagatela, ou que assinaram manifesto para que uma violenta operação de reintegração de posse contra uma comunidade carente fosse denunciada à CIDH. Havia, ainda, descrição da pena disciplinar de censura a uma magistrada que concedeu liberdade a onze réus que, em prisão provisória, já haviam permanecido detidos por tempo superior ao fixado em sentença de primeiro grau.

Neste último mês de outubro, dois episódios ensejaram novamente a reflexão sobre a chamada independência judicial ou autonomia funcional de juízes e juízas.

Na primeira quinzena, foi aprovada uma lei que transfere para a Justiça Militar a competência para julgar crimes dolosos contra a vida praticados por oficiais das forças armadas. Se mecanismos de constrangimento e intimidação são cada vez mais corriqueiros na justiça comum, o que dirá no contexto militar, com a corte submetida a hierarquia de comando das próprias forças de segurança militares. O Escritório para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), além de outras organizações já se manifestaram contrariamente à medida, destacando que o “julgamento por tribunais militares de denúncias de violações de direitos humanos cometidas por militares, especialmente por supostas violações contra civis, impedem a possibilidade de uma investigação independente e imparcial”.

No final do mês, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) admitiu a reabertura de procedimento administrativo disciplinar contra magistrados e magistradas do Rio de Janeiro, argumentando que sua participação em uma manifestação pública, organizada por movimentos sociais apartidários, que questionava o então recente impeachment presidencial, configuraria violação do artigo da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman)(1).Não houve, contudo, nenhum procedimento aberto contra integrantes da carreira que participaram de manifestações favoráveis ao impeachment.

É claro que é preciso haver mecanismos de fiscalização e controle dos limites da atividade judiciária e de magistradas e magistrados que extrapolem suas competências e funções. Mas existe uma diferença evidente entre fiscalização e perseguição, entre controle e intimidação, entre segurança jurídica e manutenção de uma ordem fundada na punição dos pobres e nos privilégios para as elites.

A resolução dessa equação pode avançar por meio da promoção de mais transparência no modo e nos critérios que regem a condução de procedimentos disciplinares internos nas carreiras, bem como da abertura das carreiras jurídicas para a participação da sociedade civil.

O que se propõe não é uma defesa incondicional da independência judicial, mas a limitação do controle exclusivamente interno que, por não ter nenhum contraponto, segue se pautando em critérios ideológicos para o funcionamento da justiça. E trata-se de uma ideologia de manutenção de ordens elitistas e privilégios relacionados. Isso tudo impacta a própria essência do Estado Democrático de Direito.

É urgente impedir os retrocessos sobre os mecanismos que permitem que a sociedade opine, participe e constranja abusos – como é a finalidade, por exemplo, das Ouvidorias Externas nas instituições do sistema de justiça. Isso também diz respeito a essa essência e ao futuro do regime democrático do país.

Nota

(1)Na ocasião, o IBCCRIM se posicionou repudiando a decisão. Nota disponível no link https://www.ibccrim.org.br/noticia/14277-Nota-Publica-Decisao-do-CNJ-de-reabrir-processo-disciplinar-afronta-autonomia-e-liberdade-de-expressao-da-magistratura



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