Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
Os últimos meses têm sido marcados por retrocessos em conquistas sociais históricas. Ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais cabe ressaltar as nuances desse processo que impactam mais diretamente o sistema de justiça criminal e, de forma bem específica, as três pautas estratégicas encampadas pelo Instituto para os próximos anos: a reversão do superencarceramento, o combate à violência e à letalidade policial e, de forma transversal, a democratização do sistema de justiça.
Vale ressaltar que, em abril de 2017, o Instituto publicou o caderno intitulado "16 Propostas Legislativas contra o Encarceramento em Massa", formulado em parceria com a Associação Juízes para a Democracia, o Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação da UnB e a Pastoral Carcerária, posteriormente assinado por mais de 70 organizações.(1)
Deste caderno, destaca-se a proposta nº 16, na qual se discorre, de forma detalhada, sobre os requisitos para a garantia da rigorosa externalidade de Ouvidorias e demais mecanismos dedicados à fiscalização e ao controle do sistema de justiça, inclusive do sistema prisional, por parte da sociedade civil.
Para a realização dessas atividades fiscalizatórias, é também fundamental a consolidação de órgãos, conselhos e demais instrumentos de participação popular, previstos na Constituição Federal de 1988, e tratados internacionais. Tais instâncias foram pensadas para se avançar no adensamento democrático do país. São ferramentas essenciais e que fazem falta ao sistema de justiça, no qual timidamente se avançou nesse quesito, com a implementação de algumas poucas Ouvidorias Externas. É o caso de apenas 11 das 27 Defensorias Públicas Estaduais e algumas Ouvidorias de Polícia. Carecem de Ouvidorias Externas os Ministérios Públicos, a Magistratura, Administrações Penitenciárias e as Administrações das Fundações de Atendimento Socioeducativo, também de todas as esferas. Os Conselhos Nacionais dedicados à realização de algum controle contam com a participação minoritária da sociedade civil e, ainda, sem amparo em critérios de externalidade para a indicação dessa representação.
Infelizmente, esses mecanismos, mesmo incipientes, não têm passado ao largo de ofensivas do poder constituído. Não se pode deixar de noticiar e comentar alguns episódios que evidenciam movimentos de alijamento da sociedade civil de espaços historicamente construídos para garantir sua participação e capacidade de monitorar e de fiscalizar instituições públicas.
É digno de nota um recente episódio: no último dia 13 de julho, no Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo, prosperou por ampla maioria de votos uma proposta de alteração do modelo de eleição para o cargo de Ouvidor/a-Geral. Esta é (ainda) uma Ouvidoria Externa, ou seja, resultante da eleição de um/a representante da sociedade civil a partir de um processo eleitoral conduzido sem interferência do ente fiscalizado sobre a escolha de seu fiscalizador independente.
A alteração pode não chamar atenção de quem não tem familiaridade com o modelo de Ouvidoria Externa e demais mecanismos de participação. Mas ela não deve ser invisibilizada, pois consiste em uma mudança capaz de abrir caminho para um retrocesso maior na Defensoria Pública de São Paulo, instituição na qual se depositam historicamente as esperanças de inovação no sistema de justiça.
Ignorando diretriz principiológica constante da Lei Orgânica da Defensoria de São Paulo, criada em 2006 após ampla mobilização de mais de 400 movimentos e organizações sociais, o Conselho Superior tomou uma decisão que também desconsidera avanços legislativos datados de 2009, quando uma Lei Nacional estendeu para todo o país o cerne do dispositivo normativo acima referido, que previa a eleição da Ouvidoria com caráter externo.(2).
Durante mais de 10 anos, esse modelo funcionou em São Paulo. Agora, por uma virada de composição e de entendimento no Conselho Superior, a eleição da Ouvidoria terá sua etapa de organização feita por um colegiado de Defensores/as, presidido pela Corregedoria da instituição. Caberá ao ente fiscalizado decidir quem poderá votar e ser votado/a no processo.
Passando à área de privação de liberdade, vale relacionar também o fato de que administrações penitenciárias têm promovido, em todo país, gradual e seletivamente, a diminuição das possibilidades de entrada de organizações da sociedade civil em estabelecimentos prisionais, entre elas a Pastoral Carcerária, que já noticiou restrições em 14 estados da federação.
Coincidentemente, de forma sequencial ao encaminhamento ou publicização de denúncias de situações de precariedade, maus tratos e até mesmo de tortura, autoridades da área passaram a impedir que pessoas com histórico de denúncia realizassem visitas a instalações.
Em seus diferentes níveis de gravidade, esses incidentes devem gerar alerta, ao constituir exemplos de uma política que se tece há décadas, marcada pela falta de transparência e exclusão da sociedade civil da fiscalização e da participação no sistema de Justiça e na execução de penas e medidas socioeducativas.
Para assinalar de forma breve os demais riscos aos sistemas de fiscalização e garantia de direitos, vale reproduzir também a notícia de que até mesmo o juiz corregedor do presídio de Cruzeiro do Sul/AC foi impedido de entrar no estabelecimento, no último mês de julho, ao tentar exercer sua função legal de fiscalização na unidade. Conforme informações veiculadas pela imprensa, (3) ele foi barrado por um general do Exército.
A ocupação militar do prédio deu-se em virtude do Decreto Presidencial nº 17, de janeiro/2017, que autorizou a entrada das Forças Armadas em presídios do país, de forma quase indiscriminada. Vige, hoje, portanto, um verdadeiro estado de sítio informal nas unidades prisionais, instituído por decreto, sem embasamento legal e completamente alheio à disciplina constitucional. Pode-se afirmar que, no que se refere à execução penal, as instituições brasileiras já estão se convertendo em um ambiente permissivo a práticas à margem da lei, sem qualquer controle civil ou possibilidade de garantia de direitos.
Relacionados esses retrocessos na administração do sistema de justiça e somando esses acontecimentos a uma série de outras ofensas a direitos civis e sociais, é inegável que o que está em curso não passa de um movimento de diminuição drástica do compromisso das organizações do Estado, em especial do sistema de justiça, com a transparência. Em última análise, isola-se cada vez mais o povo como uma plateia a lamentar a degradação da democracia no país. No lugar de abrir as instituições ao povo, acentua-se o fechamento e a opacidade.
Em suma, verifica-se que o momento é urgente para olhar para a situação dos instrumentos de participação, controle social externo e fiscalização das instituições públicas e cuidar para que não haja mais retrocessos. Se, em fases de normalidade institucional, já se coloca o desafio do exercício democrático por meio dessas ferramentas de participação, em momentos de autoritarismo, primar por sua efetiva existência mostra-se indispensável.
Um dos meios de resistência mais estratégicos neste momento parece ser justamente garantir que esses canais sejam redirecionados para seus propósitos, para serem ocupados e exercidos de forma legítima, independente de pautas corporativas, e radicalmente comprometida com os interesses da população.
Notas
(1) Disponível em <arquivo.ibccrim.org.br/desencarceramento>. Das 16 medidas desdobraram-se 14 projetos de lei que tramitam atualmente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
(2) A Lei Complementar º 132/2009 alterou a Lei Complementar º 80/1994, que rege nacionalmente as Defensorias Públicas, para prever, no artigo 105-B, caput: “O Ouvidor-Geral será escolhido pelo Conselho Superior, dentre cidadãos de reputação ilibada, não integrante da Carreira, indicados em lista tríplice formada pela sociedade civil (...)” (sem grifos no original).
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