INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 294 - Maio/2017





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi

Conselho Editorial

Editorial

Pela definitiva extinção das casas dos horrores

Simão Bacamarte, o alienista do conto de Machado de Assis, voltou da Europa para a pequena Itaguaí após estudar psiquiatria, imaginando que a loucura fosse uma pequena ilha no oceano da razão. Com o tempo, descobriu tratar-se de um verdadeiro continente e, por isso, internou quatro quintos da população da cidade no asilo para loucos por ele inaugurado, chamado Casa Verde.

Bacamarte expressa, com rara precisão, o “Zeitgeist” do modelo psiquiátrico clássico em matéria de saúde mental no final do século XIX. No que diz com a loucura, a internação em instituições totais de modelo manicomial era a regra.

Hoje, em pleno século XXI, a ideia de que o paciente psiquiátrico é sujeito de direitos transformou o modelo de saúde mental a partir de novas possibilidades.

A reestruturação da atenção psiquiátrica tem como pilares o atendimento comunitário, descentralizado, participativo, integral, contínuo e preventivo. Nesse contexto, a reforma psiquiátrica surgiu como resistência ao modo manicomial de tratar a loucura, contra a lógica hospitalocêntrica inocuizadora e excludente.

A etiologia da doença mental, antes focada no conceito de ausência de doença, hoje é enfrentada de forma mais ampla: saúde significa bem estar biológico, psicológico e social. O tratamento abrange equipe multiprofissional e envolve não apenas o paciente, mas as pessoas com quem se relaciona, dentro do objetivo de preservar sua manutenção em seu meio social. A regra é o tratamento ambulatorial, reservando-se a internação –

sempre em hospitais gerais ou centros de atenção psicossociais (CAPS) – apenas quando os recursos menos violadores de direitos se mostrarem insuficientes e pelo menor período possível para estabilização do quadro.

Nesse sentido, a Lei 10.216/01 (Lei Antimanicomial), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, representa importante passo rumo à construção de uma política pública respeitadora dos direitos humanos.

A lógica do confinamento e da exclusão ainda persiste. A desconstrução da política nacional de atendimento à saúde mental é um objetivo de setores com grande influência, que colocam a possibilidade de lucro ou expansão de sua própria incidência política acima do objetivo de promoção da inclusão social do paciente psiquiátrico.

Nesse sentido, a Resolução 01/2015, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, que passou a permitir o repasse de recursos públicos às comunidades terapêuticas e religiosas (CTs), teve sua vigência suspensa pela Justiça Federal,(1) a pedido do MPF/SP, sob o fundamento de que as CTs que acolhem, em caráter voluntário, pessoas que fazem uso problemático de substâncias psicoativas, descumprem a regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS) para atendimento, como assistência integral, incluindo serviços médicos, de assistência social e psicológica. Segundo nota divulgada pelo MPF, a “falta de fiscalização nestas entidades propicia a ocorrência de violações de direitos humanos, com casos já registrados de desrespeito à liberdade religiosa, trabalho forçado, bem como tortura e cárcere privado”.(2) Logo após a prolação de mencionada decisão judicial, a Secretaria de Atenção à Saúde, vinculada ao Ministério da Saúde, editou a Portaria 1.482, de 2016, por meio da qual as CTs foram consideradas elegíveis ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, como “polo de prevenção de doenças e agravos e promoção da saúde”, o que tornou possível, novamente, o repasse de recursos públicos a referidas instituições.

Se as tentativas de retrocesso no que toca à política de atenção à saúde mental são normalmente alvo de intensa e eficiente mobilização social pelos defensores da luta antimanicomial, há um âmbito, contudo, no qual as políticas de atenção ao paciente psiquiátrico permanecem sob a égide da lógica de confinamento do século XIX, sem grande resistência: os manicômios judiciários.

O paciente psiquiátrico criminalizado, aquele que acessa o aparato público de tratamento por via da Justiça Criminal, não é entendido pelas instituições como sujeito dos direitos previstos na Lei 10.216/01, muito embora essa lei seja expressa em determinar que seus dispositivos são aplicáveis a todo e qualquer indivíduo submetido a tratamento no âmbito da saúde mental.

Os manicômios judiciários, assim, dada a resistência dos operadores do direito em aplicar a Lei Antimanicomial, permanecem sendo regidos pela Parte Geral do Código Penal e pela LEP, de 1984, de forma absurdamente dissociada de padrões mínimos de qualidade do atendimento. Como exemplo, cita-se o período mínimo de internação de um a três anos em manicômio como medida obrigatória, sempre que houver absolvição imprópria por fato análogo a crime punido com pena de reclusão, estando a desinternação condicionada à comprovação de “cessação da periculosidade”. Assim, pela lógica do Código Penal, ainda que existam julgados relativizando essa previsão completamente desarrazoada, é obrigatória a internação em manicômio, por prazo mínimo de um ano, de alguém com transtorno mental que tenha praticado, por exemplo, um furto simples. Verifica-se, portanto, que a presença de transtorno mental, pela lógica da lei penal, agrava infinitamente a posição da pessoa criminalizada, impondo a obrigatoriedade de confinamento compulsório independentemente do quadro clínico do paciente, por período inaceitavelmente longo. A aferição de cessação de periculosidade, por sua vez, exigida pela lei, redunda na abertura de espaço para o subjetivismo do técnico, já que o conceito de “periculosidade” carece de cientificidade, sendo apenas uma palavra inventada para justificar o confinamento.(3) Nesse passo, a avaliação técnica passa a ser dominada pelos preconceitos sociais, raciais e econômicos que, no mais, embasam toda a seletividade do sistema penal.

É mais que urgente o fechamento dos Manicômios Judiciários e a reorientação das medidas de segurança para atendimento pelo SUS, ficando a internação adstrita às necessidades do caso clínico, mediante avaliação de equipe multiprofissional e laudo médico. Os Manicômios Judiciários, nomeados como Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico pela LEP e pelo Código Penal, são instituições asilares, proibidas pela Lei 10.216/2001, de vigência posterior . Ou seja, são instituições ilegais, onde a medicalização desenfreada e a segregação não servem para nada além da completa destruição da dignidade do paciente .

Experiências como o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), implementado em Goiás, onde a lógica manicomial foi substituída pelo encaminhamento dos pacientes aos aparelhos do SUS, demonstram resultados impressionantes, com a redução do índice de reincidência a níveis impensáveis para os Estados que permanecem insistindo nas “casas dos horrores”.

Em suas “16 medidas de combate ao encarceramento em massa”, o IBCCRIM e instituições parceiras propuseram, nos moldes do PAILI, a alteração da legislação para promover o redirecionamento ao SUS das medidas de segurança, harmonizando sua disciplina e a Lei 10.216/01. Intencionamos, assim, poder contribuir com a Luta Antimanicomial, esperançosos de que, em não muito tempo, as casas da loucura e dos horrores tornem-se não mais que uma triste página da história do Brasil.

Notas

(1)  Autos da Ação Civil Pública 0014992-18.2016.403.6100, que tramita na  20a Vara Federal de São Paulo. A decisão de antecipação da tutela foi proferida em agosto de 2016.

(2)  Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2016/agosto/justica-suspendenorma-do-conad-sobre-recursos-a-comunidades-terapeuticas/>, acesso em 18/4/17.

(3)  Em pesquisa que teve como objeto o estudo de laudos de cessação de periculosidade de pacientes submetidos a medida de segurança, Cristina Rauter (Criminologia e subjetividade no Brasil, Rio de Janeiro: Revan, 2003,  p. 97-98) conclui: “O que podemos facilmente verificar é que também os exames de cessação de periculosidade compartilham da ideologia posta em ação desde a fase policial (no reconhecimento do crime e do criminoso) até a fase judicial: pune-se e julga-se muito mais um indivíduo em função de sua classe social do que em função de seu crime. Segundo tal concepção, quem é o criminoso? Alguém pobre, negro, favelado, analfabeto, rude e não tanto alguém que matou ou furtou, simplesmente”.



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