INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 291 - Fevereiro/2017





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo e Danilo Dias Ticami

Conselho Editorial

Editorial

Os protagonistas da barbárie

O ano de 2017 iniciou-se em meio a um banho de sangue nas prisões. A persistência da ideologia de extermínio e neutralização de indivíduos que permeia a política penitenciária e o sistema de Justiça teve como resultado mais um morticínio, que já deixou um rastro de 133 mortos no ano, apenas até o dia 16 de janeiro, colocando em xeque as frágeis promessas do nosso Estado Democrático de Direito.

Ainda que morte e degradação sejam comuns em nosso sistema prisional, orientado para o encarceramento em massa de classes sociais indesejadas, as rebeliões no Amazonas, em Roraima e no Rio Grande do Norte tiveram o condão de chamar a atenção do grande público para a situação animalesca à qual são submetidos os custodiados por todo o Brasil, e cujo resultado elementar é o surgimento e fortalecimento dos comandos prisionais.

Segundo os dados do DEPEN de 2014(1) , entre os anos de 2008 e 2014, a população prisional brasileira cresceu 33%, chegando a mais de 607 mil pessoas e contrariando o movimento de queda em países como EUA (8%), China (9%) e Rússia (24%), a demonstrar que, dentre os países que mais encarceram no mundo, o Brasil é o único que persiste no erro.

No âmbito do Governo Federal, aliás, essa persistência no equívoco transparece no reforço à malfadada política de guerra às drogas, acompanhada de ações e demonstrações do atual Ministro da Justiça(2) , no retrocesso da já acanhada política de indulto, por meio do Decreto 8.940/2016, e no desvio de recursos do Fundo Penitenciário Nacional para atividades policiais, por meio da Medida Provisória 755/2016.

Chama a atenção, contudo, que a progressão alucinante do crescimento da população carcerária tenha se demonstrado insensível a diversos movimentos reformadores. Nesse sentido, cita-se a edição da Lei 12.403/2011, que trouxe o novo regramento das medidas cautelares penais e, à época de sua edição, foi taxada como “lei da impunidade” por setores da mídia e do sistema de Justiça. Contudo, o que se verificou, seis anos após sua aprovação, é que a alteração foi praticamente inócua, sendo que a taxa de presos provisórios permaneceu constante, já que a maioria dos juízes continuou a aplicar a prisão provisória indiscriminadamente, negando vigência à lei.

Outro exemplo de movimento reformista que se demonstrou insuficiente foi a concessão, pelo Pleno do STF, da medida cautelar na ADPF 347, que pede a declaração de estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário. A liminar foi parcialmente concedida, para que se determinasse a instalação de audiências de custódia em todas as comarcas (decisão que vem sendo desrespeitada pela maioria dos Tribunais) e o descontingenciamento das verbas do Funpen.

Os demais pedidos liminares da ADPF foram negados, como a determinação para que todos os juízes considerassem a condição degradante do sistema penitenciário na aplicação das penas e julgamento de cautelares e direitos da execução. O STF reforça, assim, a postura da maioria dos juízes criminais, que exercem sua função de forma alienada acerca da realidade prisional e da violação estrutural de direitos ocorrida no cárcere.

A recusa do Judiciário em assumir responsabilidade pelos massacres, aliás, fica clara na fala de seus representantes, como o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Jayme de Oliveira, que declarou: “Essa crise diz respeito ao Poder Executivo, à questão dos estados, à gestão dos presídios. E gestão de presídio não é assunto nosso”(3) . O Corregedor Nacional de Justiça (CNJ), ministro João Otávio de Noronha, foi igualmente contundente: “A situação não envolve juízes e sim gestão dos presídios, que é um problema do Executivo e não do Judiciário”(4) .      

Causa espécie que os magistrados se olvidem, ou finjam olvidar-se, que a LEP, em seu art. 66, atribui ao Judiciário a função de zelar pelo correto cumprimento da pena, inspecionar as prisões, promover a regularização destas e, inclusive, interditar unidades. Esquecem-se, ainda, que a marca de cerca de 40% de presos provisórios advém da ineficiência do Poder Judiciário em cumprir os prazos processuais e da violação da Constituição levada a cabo pelo abuso da prisão cautelar.

Diante dessas constatações, aflora a conclusão de que os movimentos reformistas pelo desencarceramento soçobraram pelo fato de que o problema não está apenas na produção legislativa ou no déficit de políticas públicas, mas também na postura dos juízes, imersos em uma cultura classista, ilegalista e autoritária. Alterações legais e medidas político-criminais pouco valem quando os juízes atuam como combatentes de uma suposta guerra contra a criminalidade, sem qualquer limite ou baliza legal.

É urgente que o Poder Judiciário submeta-se aos preceitos e paradigmas democráticos. Não é aceitável que a função jurisdicional se dê sem o mínimo de controle social democrático ou que a administração da Justiça não se submeta à participação popular. Não é admissível que os concursos de seleção de magistrados continuem insensíveis à distorção classista e racial, passando ao largo de discussões sobre cotas e selecionando apenas pessoas cuja vivência se aparta em muito daquela do jurisdicionado. Não é admissível que os juízes não conheçam as prisões e repitam o discurso falso e cínico de que “isso não é problema do Judiciário”. Não há espaço, em um Estado Democrático de Direito, para um Poder irresponsável que, quando confrontado com a danosidade provocada pela sua atuação, aja como um avestruz que enterra a cabeça na areia. Não é possível, ainda, que os demais atores do sistema de Justiça quedem-se inertes ou coniventes. O Ministério Público permanece ineficiente no controle da atividade policial e na fiscalização dos locais de aprisionamento, enquanto mobiliza-se em um “lobby” político pela aprovação de um inoportuno e irresponsável pacote de endurecimento penal – as odiosas “dez medidas de combate à corrupção” –, que, longe de mirarem especificamente o fim da corrupção, pretendem alargar ainda mais as hipóteses de prisão provisória e endurecer as penas, sem considerar a seletividade estrutural do sistema penal e sem qualquer previsão ou estudo acerca de seu impacto na situação prisional.

Assim, diante desse cenário lamentável, enquanto o Poder Judiciário e os demais atores do sistema de justiça escondem-se dos resultados trágicos de sua própria atuação, aumentam as pilhas de cadáveres de miseráveis, sob o “silêncio sorridente” dos Tribunais.

Notas

(1) Dados já desatualizados, já que, desde 2014, o Governo Federal não promoveu mais nenhum censo do sistema prisional brasileiro. A ausência de dados confiáveis, aliás, demonstra a desídia com a qual a questão prisional é tratada.

(2)  Vale lembrar que o atual Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, depois de fazer-se filmar cortando pés de maconha no Paraguai, declarou como um de seus objetivos a “erradicação da maconha no Brasil”, expectativa pueril que demonstra desconhecimento quanto aos problemas da política nacional de drogas e que tem o condão de produzir ainda mais mortes e violência institucional pela ação do sistema penal.

(3) Disponível em: <http://jota.info/justica/crise-carceraria-e-questao-executivo-diz-amb-17012017>.

(4) Disponível em: <http://jota.info/justica/crise-carceraria-nao-e-questao-judiciario-diz-noronha-16012017>.



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