INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 290 - Janeiro/2017





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo e Danilo Dias Ticami

Conselho Editorial

Editorial

Violência real, legalidade simbólica e a longa noite

O Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Matou-se aqui desde 2011 mais do que a guerra na Síria, que mobiliza as atenções internacionais como o conflito mais violento do presente. Segundo a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2016), 76% dos brasileiros têm medo de morrer assassinados. A cada 9 minutos uma pessoa morre de forma violenta. E há desigualdade na experiência da violência: 54% das vítimas são jovens, 73% são pretas e pardas.

Segundo levantamento preparado para o Ministério da Justiça, a maioria das mortes está concentrada em 240 bairros do país. Apesar da magnitude dos números, desse ponto de vista, a situação também é passível da intervenção dos governos. A morte violenta tem endereço.

A participação das polícias nesse quadro tem sido mais a de fazer parte do problema do que da sua solução. Em 2015, foram contabilizadas oficialmente 3.320 mortes decorrentes de intervenção policial. Desde 2009 são 17.688 mortes resultantes de ação policial. No mesmo período, morreram duas vezes mais policiais brasileiros do que americanos; 358 policiais em 2015. Dois terços morreram fora de serviço, condição que apresenta tendência de crescimento.

O quadro é grave e demonstra que as instituições policiais, em vez de priorizarem a redução da violência, fazem largo uso dela em suas atividades, expondo a si e a população. 70% das pessoas ouvidas pela pesquisa do FBSP consideram que as polícias exageram no uso da violência. 59% têm medo de ser vítima da Polícia Militar, metade das pessoas não crê que a PM seja eficiente para trazer segurança à população. Em relação à Polícia Civil, 53% têm medo dela e 48% não acredita que ela seja eficiente para elucidar crimes.

Ao lado da tragédia da violência, há uma crise de confiança na capacidade das polícias em reverter o quadro da insegurança. Nunca se investiu tanto em segurança pública quanto na última década, mas o resultado de fazer mais do mesmo não reduziu a violência nem a desconfiança nas instituições da segurança. 1,38% do PIB brasileiro é hoje gasto em segurança pública, padrão compatível com os países de democracia consolidada e, mesmo assim, a imensa maioria acredita que a polícia abusa da violência.

Se fazer mais do mesmo não melhorou, mas agravou o quadro, é hora de discutir mudanças institucionais, de práticas e de conhecimentos para o enfrentamento da violência social e da violência do Estado.

Os movimentos sociais de juventude negra e de periferia iniciaram uma grande luta por reconhecimento de uma situação de genocídio, com a qual pretendem ações concretas e efetivas para que não haja mais mortes violentas. Pretendem responsabilizar ações do Estado que diretamente e indiretamente produzem o quadro de extermínio por ação, conivência ou omissão das instituições estatais. A reivindicação é por reconhecimento de que a situação de extermínio que existe no Brasil é da mesma natureza – perversa e abominável – de outros quadros de violência extremada que foram reconhecidos, repudiados e revertidos.

Movimentos de policiais também reivindicam mudanças institucionais e atenção especial ao sofrimento e à vitimização policial. Especialmente, associações de praças pedem a desmilitarização dos corpos policiais, com o apoio majoritário das categorias (que chega a 70% segundo pesquisa do FBSP), por serem incompatíveis com os direitos humanos e trabalhistas, violados por códigos de condutas obsoletos e autoritários. Grupos organizados de praças procuram dar visibilidade ao lado sombrio de uma profissão que vive sob a pressão da guerra, oprimida por estruturas hierárquicas que dão vazão a práticas abusivas, sem direito a opinião, contestação, sugestão, dissidência.

Vários projetos de lei e de emendas constitucionais relativos a mudanças institucionais tramitam no Congresso Nacional. Alguns pretendem instituir o ciclo completo de policiamento, dando aos mesmos corpos policiais as atribuições de polícia ostensiva e investigativa. Esta discussão, que é da maior importância para a cidadania e diz respeito aos direitos fundamentais de todas e todos, está restrita a audiências parlamentares que têm ouvido apenas as demandas corporativas, sem uma discussão social mais ampla sobre quais seriam os objetivos do policiamento e as melhores formas organizacionais para atingi-los.

Todos esses movimentos, com orientações muito distintas, apontam para a urgência em discutir e implementar reformas, mudanças de atuação, produzir conhecimento qualificado para que o debate possa atingir o nível exigido pela magnitude do desafio imposto pela violência.

O IBCCRIM é uma entidade que pode e deve trabalhar para qualificar o debate e as ações públicas, corporativas, legislativas e judiciais sobre as reformas institucionais da segurança pública, incluindo as polícias, mas sobretudo considerando que todo grande desafio exige articulação entre muitas esferas, instituições e níveis.

Nosso instituto completa 25 anos tendo se constituído como um espaço de produção de conhecimento, reflexão, encontro e aperfeiçoamento técnico para profissionais, gestores, pesquisadores e ativistas envolvidos com a defesa de garantias fundamentais, preocupados com a expansão do Estado penal, contrários a abusos e arbitrariedades de todos os tipos envolvendo a criminalização e o tratamento dos desviantes. Sua criação sucedeu a indignação dos fundadores e primeiros associados com o episódio do Massacre do Carandiru, o qual fez convergir as perversidades da atuação policial abusiva com as do encarceramento crescente e em condições precárias. Nos 25 anos transcorridos, não houve punições individuais nem reformas organizacionais capazes de colocar freio às concepções equivocadas do uso da força policial, aos abusos ou aos dramas humanitários e condições abomináveis das cadeias pelo país afora. 

Ainda vivemos a longa noite de 1992 e construir o IBCCrim como instrumento dinamizador da produção e disseminação de saberes para a promoção dos direitos humanos, contra um Estado Penal-policial autoritário, desigual e abusivo ainda se faz necessário.



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