INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 288 - Novembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

Desvelando o segredo de justiça

Há cerca de um ano, as Corregedorias-Gerais do Ministério Público e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo publicaram recomendação conjunta a seus membros, no sentido de interromper prática comum de acordos entre as partes enquanto expediente destinado ao julgamento antecipado da ação socioeducativa, movida em face de adolescentes acusados da prática de ato infracional. Segundo o texto da Recomendação conjunta n. 01/2015, infere-se que a prática implica a renúncia das partes à instrução processual, com o consequente “julgamento antecipado” da ação socioeducativa, tendo sido assim descrito em artigo específico sobre o tema: “(...) O promotor de Justiça elabora uma representação contra o adolescente, e é designada uma data para audiência de apresentação, na qual podem comparecer o adolescente e seus representantes legais. Até a audiência, a criança ou adolescente ficam internados provisoriamente. Nessa audiência, negocia-se livremente a liberdade do adolescente: Se o adolescente confessar, o Ministério Público desiste de produzir outras provas. A defesa precisa concordar. Se o ‘acordo’ for realizado, imediatamente o adolescente é sentenciado ao cumprimento de qualquer medida diferente da internação e, no mesmo dia, sai da Fundação Casa. Se não confessar, o Ministério Público requer a manutenção da internação provisória, o juiz mantém o adolescente internado e designa data para audiência em continuação ”.(1)

Em tempos de espetacularização da justiça criminal e de assombrosa celebração do instituto da delação premiada como mecanismo legítimo à constituição de sentenças penais condenatórias em todos os cantos do país, a iniciativa das instituições paulistas, muito embora possa causar, à primeira vista, estranhamento por ter de recomendar a seus membros que se abstenham de violar o direito ao devido processo legal, é especialmente oportuna e nos lembra que, em tempos como os que atualmente vivemos, muitas vezes é necessário dizer e redizer o que parece óbvio.

Se, como ensina Langbein,(2) a operacionalização cada vez mais tenaz da transição do processo criminal acusatório para um processo de confissão, levada a cabo pela importação de modelos de pragmatismo anglo-saxão, como o plea bargain, pode ter efeitos devastadores na vida de qualquer adulto sujeito ao sistema de justiça criminal, de se imaginar as consequências de práticas semelhantes quando, no banco dos réus, estão sentados adolescentes. Sujeitos que experimentam um processo de formação já essencialmente doloroso, agravado por inúmeras violações de direitos e pela ausência quase absoluta de políticas e equipamentos públicos que lhes atendam e amparem – na medida em que, não nos esqueçamos, o sistema penal juvenil opera, estruturalmente, à semelhança do sistema criminal comum, podendo ser caracterizado como essencialmente seletivo. Não é exagero dizer que entre seus clientes preferenciais estão adolescentes pobres, periféricos, negros e violentados, antes de sua chegada às portas do sistema de justiça infracional, das mais diversas formas. Adolescentes experientes em toda classe de sofrimentos, privados de infância plena. 

Submeter tais adolescentes à escolha pírrica de confessar a prática de ato infracional para que possam ter a liberdade restituída implica lhes ensinar que devem se declarar culpados porque não podem correr o risco de se dizerem e de se reconhecerem como inocentes. E, ainda que não o sejam ou ainda que não se reivindiquem como tal, envolve lhes negar o direito ao devido processo legal, em refutar qualquer análise detida e rigorosa de provas e em lhes aplicar verticalmente uma justiça impessoal e utilitarista, afastada das garantias que lhes são especial e prioritariamente devidas enquanto sujeitos de direito. Importa em lhes negar tratamento compatível com tal condição e em domesticar, quando não silenciar, o direto à defesa. Significa, no limite, reconhecer que não há qualquer espaço ao amadurecimento de uma compreensão mais ampliada quanto à constante criminalização da pobreza, que faz da juventude pobre brasileira alvo especialmente vulnerável, e em fazer com que a justiça funcione sob um código de ética peculiar e distorcido, capaz de fornecer uma única resposta a fenômenos tão complexos: a condenação e o estigma dela decorrente.

O direito penal juvenil é ainda área pouco explorada e desafiadora, principalmente porque algumas de suas premissas, como o melhor interesse do/a adolescente e o caráter socioeducativo das medidas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, são altamente permeáveis e passíveis de colonização segundo os mais diversos interesses. Não por acaso, elas podem ser invocadas para afastar a incidência de garantias materiais ou processuais, procedimento que resulta na prática, muitas vezes, em conferir a adolescente tratamento mais rigoroso que aquele dirigido a adulto em situação semelhante, apesar de existir expressa vedação legal para tanto, no art. 35, I, da Lei 12.594/2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.

Nesse sentido, é digno de nota o primeiro aniversário da louvável iniciativa conjunta de duas das instituições atuantes no sistema de justiça infracional de São Paulo, como passo importante para que se caminhe na construção de um sistema de justiça mais empático, democrático e ressignificativo. Que esse exemplo alcance os demais estados do país e frutifique.

Notas

(1) Feller, Marcelo. Prender para confessar é uma realidade das varas da infância de São Paulo. Artigo publicado pelo CONJUR, disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-fev-10/marcelo-feller-prender-confessar-rotina-varas-infancia>.

(2) Apud Christie, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 145.



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