INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 287 - Outubro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

“Esse tempo, felizmente, já passou”?

Desde as jornadas de junho de 2013, as cidades brasileiras – e especialmente a cidade de São Paulo – passaram a ter de lidar cotidianamente com as manifestações de rua. E, apesar de o direito de manifestação estar expresso na Constituição Federal desde 1988, ainda não pôde ser exercido de forma plena. Isso porque o que se tem visto em quase todas as manifestações recentes são tentativas autoritárias dos membros do Poder Executivo de frustrar o direito de manifestação exigindo condições, impondo limites e utilizando-se de recursos de fazer inveja à ditadura militar.

No estado de São Paulo, à recorrente violência policial nas manifestações de rua foram adicionados alguns novos elementos à tradicional fórmula repressiva – inclusive de viés político-partidário –, concretizando uma verdadeira política pública de repressão a determinadas manifestações de acordo com sua pauta política e os atores sociais que dela participam. Nas últimas semanas, em virtude da finalização do processo de impeachment, houve várias manifestações em repúdio ao Presidente Michel Temer na cidade de São Paulo. Em praticamente todas, em algum momento, houve fechamento das estações de metrô e repressão violenta por parte da Polícia Militar com um verdadeiro festival de bombas de efeito moral, balas de elastômero (balas de borracha) e prisões arbitrárias. Porém, conforme amplamente noticiado, o tratamento dispensado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo aos manifestantes que foram às ruas apoiar o processo de impeachment foi absolutamente diferente, sem qualquer repressão, violência ou prisões. Quando houve o ilegal vazamento de áudios entre os ex-presidentes Dilma e Lula, por exemplo, não só os manifestantes pró-impeachment fecharam a av. Paulista sem aviso prévio por 48 horas, como as catracas dos metrôs foram liberadas para facilitar a circulação das pessoas pela cidade. Curiosamente, não houve qualquer repressão policial. Há, portanto, um viés político-partidário nítido que pauta a forma de atuação das forças policiais, a depender da sincronia entre o que os manifestantes defendem e com o que concorda o governo do Estado, situação inadmissível em um Estado Democrático de Direito.

Mas outra característica da atuação estatal impressiona e preocupa mais do que o endurecimento da repressão às manifestações conforme o viés ideológico-partidário que as oriente. Nos últimos episódios, outros elementos – tão ilegais e autoritários quanto os anteriores – que não faziam parte do pacote repressivo estatal vieram à tona.

Na manifestação contra o Governo Temer ocorrida em 4 de setembro, algumas pessoas combinaram um ponto de encontro pelas redes sociais e, antes mesmo que o ato acontecesse, foram surpreendidas pela Polícia Militar e levados para a Delegacia de Polícia. Entretanto, quando lá chegaram, os manifestantes presos perceberam que um dos que havia sido preso com eles jamais foi apresentado. O site Ponte Jornalismo investigou a história e descobriu que o referido manifestante era uma espécie de “Cabo Anselmo” da Ditadura Militar, mas dessa vez com a patente de Capitão do Exército e em plena democracia. A participação da Polícia Civil também foi dramática e demonstra uma articulação da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, que previamente havia decidido como deveriam as forças policiais agir com os manifestantes presos. Na mesma data, vários manifestantes, inclusive adolescentes, foram presos pela Polícia Militar “para averiguação” e sem qualquer justificativa foram levados para o DEIC (Departamento de Investigação Sobre o Crime Organizado), sendo mantidos por mais de 8 horas incomunicáveis, sem acesso a advogados ou defensores públicos e, ao final, presos em flagrante. Advogados, defensores públicos e familiares que se encaminharam para o DEIC foram impedidos pela Polícia Militar de ingressar na Delegacia e todos os presos foram ouvidos pela autoridade policial sem qualquer assistência técnico-jurídica. Em arremate a toda esta organizada repressão, um Ministério Público estadual absolutamente silente que olvida de seu dever constitucional de controlar as forças policiais civis e militares e zelar pelos direitos humanos de todos os cidadãos, e, portanto, de todos manifestantes. Em audiência de custódia no dia seguinte à prisão, os manifestantes foram colocados em liberdade por decisão que continha o seguinte trecho: “O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira ‘prisão para averiguação’ sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou”.

Será que esse tempo já passou? É óbvio que todos os agentes públicos envolvidos, tanto os da Polícia Civil quanto os da Polícia Militar, sabiam da ilegalidade grosseira dos atos que praticavam, mas mesmo assim o fizeram, certamente em virtude de ordens anteriores emanadas do Poder Executivo ou pelo menos contando com sua conivência. E isso fica evidente pelo tratamento dispensado aos manifestantes opositores à situação ou pelo elogio oficial à atuação policial. É igualmente óbvio que o Ministério Público estadual sabe de sua importância no regime democrático e muito mais de sua atribuição de controle externo da atividade policial que a todo tempo é lembrada para justificar a investigação de infrações penais, mas que curiosamente desaparece quando os entes dos Estados são os perpetradores destes mesmos crimes, a ponto de intentar medidas formais para evitar que o Ministério Público federal exerça sua própria função de zelar pela efetivação dos direitos fundamentais. Quem tem medo do MP? Aparentemente o próprio MP.

Parece que esse tempo já passou. Mas outro pior pode estar por vir. A tradicional violência da Polícia Militar na condução ideológico-partidária das manifestações, a utilização de agentes infiltrados das forças armadas, as articulações entre Polícia Civil e Militar com o intuito de impedir a assistência jurídica aos custodiados, nada disso é novo. O que é novo e preocupa é que agora tudo isso está sendo feito sob as cores de um regime democrático. E se a sociedade civil e os órgãos constitucionalmente designados para isso não tomarem alguma providência, jamais poderemos concretizar a democracia no país.



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