INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 283 - Junho/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

Tortura: até quando?

"Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff"

Essas foram, entre outras, as palavras proferidas pelo deputado federal Jair Bolsonaro (RJ) durante a sessão da Câmara dos Deputados em que se autorizou a abertura de impeachment contra Dilma Rousseff.

Considerando que vivemos numa pretensa democracia desde 1988, poder-se-ia entender que essa foi uma fala caricata, feita por um congressista que só pensa em causar espanto com o que diz para, com isso, conseguir votos. Um saudoso da ditadura, fora de si, isolado no mundo, sem crédito algum. Seria algo muito mais parecido com a fala de um palhaço de muito mau gosto no picadeiro do que com o discurso de um deputado, por mais desequilibrado que fosse, no Congresso Nacional. Infelizmente, a "palhaçada" ocorre no nosso dia a dia: o fim da ditadura não implicou o fim da tortura no país, e esse discurso abjeto diz muito sobre nós.

Como todos sabem – ou deveriam saber, inclusive desde a escola, para que essa face horrenda da nossa história nunca mais se repita – Ustra foi comandante do DOI-Codi/São Paulo (Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operação de Defesa Interna), um centro de tortura e extermínio para onde eram levados, por força de sequestros, os militantes políticos de esquerda, ali submetidos às torturas, inclusive ao estupro. Também ali pessoas foram assassinadas e/ou desapareceram – sob seu comando cerca de 70 militantes foram assassinados, sem que seus corpos jamais tenham sido entregues aos familiares para sepultamento digno. A Arquidiocese de São Paulo colheu 502 denúncias de pessoas torturadas diretamente sob a responsabilidade do "homenageado".

Trata-se do único agente de Estado declarado torturador do período da ditadura militar brasileira, em razão de ação cível promovida pela Família Teles, que teve todos os seus integrantes, os pais e seus filhos de 5 e 4 anos, além da tia das crianças, grávida de 8 meses, submetidos a sequestros e torturas físicas e psicológicas sob o seu comando. O seu nome está inscrito também na lista de 377 torturadores, publicada no relatório da Comissão Nacional da Verdade.

A repulsa sentida pela mera leitura do resumo dos "feitos" do Coronel Ustra causaria, numa nação intolerante com a tortura, a imediata morte política do deputado que o homenageou. No Brasil, contudo, a reação foi diferente, e não por acaso: um dos fatores que impede o avanço da construção democrática por aqui é a falta de coragem das autoridades em agir no sentido de coibir a tortura e apurar de uma vez por todas os crimes da ditadura, o sequestro, a prisão arbitrária e o ocultamento de cadáveres que até hoje se repetem sobretudo no cotidiano da vida da população negra e pobre, nas periferias e favelas.

Nosso Supremo Tribunal Federal, ao contrário das altas cortes de países vizinhos como Argentina, Peru, Chile, Uruguai e Colômbia, julgou válida a Lei de Anistia (ADPF 153), em desabrida ofensa a qualquer senso de justiça e, sobretudo, à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o tema.

Na sequência, como era de se esperar, fomos condenados pela CIDH, no ano de 2010, pelas violações praticadas por nossa ditadura militar na denominada Guerrilha do Araguaia, na qual houve detenções arbitrárias, tortura e desaparecimento de 70 membros do Partido Comunista e de camponeses da região do Araguaia no período de 1972 a 1975 (caso Gomes Lund e outros vs. Brasil).

Nossa Comissão Nacional da Verdade teve pouco tempo e poucos recursos para trabalhar, sem falar em diversos problemas estruturais e de atribuição para melhor passar a limpo nossa história. O maior sintoma de sua ineficácia foi a pouca repercussão que se deu ao seu relatório final e, sobretudo, a nenhuma prioridade que o próprio Estado deu para a implementação de suas recomendações, numa omissão que é uma confissão clara de que, por aqui, são poucos que têm a vontade de acertar contas com o nosso passado de sequestros, prisões arbitrárias, torturas, ocultamento de cadáveres, desaparecimentos forçados e estupros.

Nossos Comitê e Mecanismo Nacionais de Prevenção e Combate à Tortura ainda engatinham, e há poucos Comitês e Mecanismos Estaduais implementados, conforme noticiado pelo IBCCRIM no seu editorial de junho/2015. A vontade política sobre o tema é quase inexistente.

Numa solução de continuidade, percebe-se que a impunidade para as arbitrariedades do passado se espelha na manutenção de violência estatal no presente. Para o Relator Especial para Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU), Juan Mendez,([1]) de acordo com diagnóstico por ele feito a partir de recente visita ao país, a tortura praticada por agentes públicos "continua sendo a regra, e não a exceção", sendo voltada "principalmente contra pessoas que pertencem a minorias raciais, sexuais, de gênero e outros grupos minoritários", em especial em locais de contenção, como delegacias de polícia, onde identificou haver "um uso excessivo da tortura na interrogação".

Por outro lado, levantamento feito pelo IBCCRIM juntamente com outras quatro organizações não governamentais mostra que mais de 60% dos casos de tortura foram cometidos por agentes públicos, principalmente policiais, agentes penitenciários e monitores de unidades de internação de jovens, concluindo que ainda se tortura para obter confissões ou informações sobre eventuais crimes.

A pesquisa, lançada em 2015, também evidencia que os casos de tortura continuam não chegando ao olhar da justiça. Realizada no período de cinco anos (2005 a 2010), o estudo identificou apenas 455 casos, envolvendo 752 réus, que foram julgados pelos 27 Tribunais de Justiça estaduais.([2]) Esse universo pífio de processos, dissonante da realidade do nosso encarceramento em massa, está em consonância com o relatório de Juan Mendez, que afirma haver no Brasil "um alto grau de impunidade pela tortura".

A leitura desses dados, somada à altíssima letalidade de nossas polícias, revela que a ideologia, os métodos e as práticas do torturador Ustra, "homenageado" de forma abjeta dentro da Casa que deveria ser do povo, e morto impune, como tantos outros torturadores que já se foram ou que perecerão antes que o Brasil se mexa, continua presente na rotina do país mesmo após décadas do fim da ditadura.

Se em pleno 2016 um Deputado sentiu-se à vontade para, em momento de grande visibilidade mundial, fazer discurso indecoroso, há algo de muito podre entre nós. Urge que, de uma vez por todas, reconheçamos isso e enfrentemos o problema da tortura e demais crimes praticados pelos agentes do Estado durante a ditadura; urge, mais ainda, que os crimes dos agentes de Estado praticados diariamente na atualidade sejam prioridade nacional.

Afinal, não há democracia verdadeira que conviva com a tortura. Não há democracia com corpos insepultos!

[1] Disponível em:
<https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G14/134/68/pdf/G1413468.pdf?OpenElement>.

[2] Disponível em: < http://goo.gl/Y1OkTk>.



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