INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 278 - Janeiro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

O “terrorismo” e o desafio da lucidez

Como a humanidade pode almejar alguma convivência harmônica diante de barbáries recentes como as de 12 e 13 de novembro passado (Beirute e Paris)? Como não se inquietar com o cotidiano em que seres humanos são capazes de inomináveis vilanias em nome de religião, política de Estado ou outra justificativa para o extermínio de outros seres humanos? O que se pode esperar, racionalmente, de postura contra atos terroristas, além da solidariedade para com as vítimas, familiares, etnias, raças, portadores de credos e, até, nações inteiras?

As perguntas são tão profundas que talvez nem todas tenham resposta. Afinal, o ser humano tem algo de intrinsecamente mau, e há atos que estão além do que a razão pode conceber.

Mas pelo menos duas respostas se podem adiantar. A primeira, de ordem geral, e a segunda, aplicável ao Brasil.

Primeiro, se o que se cobra é algo digno de ser chamado de racional, a política de guerra, que vem com o slogan de guerra ao terror ou outro que trate o acusado como inimigo (ou inimigo combatente como alcunharam os Estados Unidos da América e sua política a partir do Patriot Act de 2001), ou alguém que não merece ser sujeito de direitos, não tem como ser elogiada.

Não se trata de diagnosticar as causas dos diversos radicalismos, nem de justificar qualquer ato, pois muitos desses temas chegam a desafiar a compreensão racional. O IBCCrim não defende e nem defenderia atos atentatórios ao que proclama desde sua fundação como entidade promotora da paz. Mas, ainda que em tempos toldados pelo ‘terrorismo’ como motivo de reações as mais diversas, é preciso se assumir um ponto de vista crítico.

E é inconcebível, mais uma vez – pois foi essa a covarde política dos Estados Unidos da América com Guantánamo e Abu Ghraib – que se utilize o bordão de guerra ao terror para, como lembra Meirelle Delmas-Marty (The paradigm of the war on crime. Legitimating inhuman treatment? Journal of Internacional Criminal Justice 5, 2007, p. 585), patrocinar uma “guerra aos direitos humanos”.

O ‘terrorismo’, a ‘ação terrorista’, ou qualquer rótulo que se dê a atos inomináveis e ofensivos aos mais caros valores da humanidade, não pode ser, jamais, um biombo para Estados de exceção. Mas é isso, infelizmente, o que se vê acontecer.

Dissemina-se a ideia de Estado de exceção (com base jurídica!) para justificar atos de perseguição aos “terroristas” (vejam-se os exemplos da França e da Bélgica de maior tempo de duração das medidas), novas políticas de fronteiras (no caso Europeu, esboroa-se o acordo de Schengen ante vozes que se pretendem atuais lembrando avisos que teriam sido dados décadas atrás, com argumentos – e aqui há um eufemismo – segregacionistas, segundo os quais ‘terroristas’ entrariam infiltrados junto à horda de refugiados), e se exibem prisões em massa e manifestações diuturnas de atividades militares à luz do dia. Na assimetria desesperada das respostas, a lógica é a de “nós” (o Estado) contra “eles” (os ‘terroristas’).

Assistem-se campanhas governamentais belicistas de vários países que se autoatribuem a legitimidade, com aceitação popular. E se transforma, assim, o Estado de Direito em Estado Policial. Eis o Estado de exceção.

Mas como não há “guerra” entre culturas, e nem de um Estado moderno (do que são exemplos a própria França e os Estados Unidos da América) contra um autoproclamado “Estado Islâmico”, que nem tem a conformação de Estado organizado, de “guerra” – ao menos honestamente – não se pode falar.

Tudo se dá em tempos de paz, mas de não lucidez. O que se nota – como foi em 11 de setembro de 2001 e outros momentos – é o advento de políticas que representam retrocessos em conquistas de direitos fundamentais, desde a própria vida até os mais comezinhos direitos inerentes ao devido processo penal.

É preciso lucidez para ver que expressões como “guerra justa”, “ação preventiva”, “atos antiterrorismo”, podem ter a mesma irracionalidade dos atos que as animaram. Tais ideias, como também mudanças legislativas embaladas nesse espírito, contrariam a “própria base axiológica democrática”, nas palavras de Maurício Stegemann Dieter (Terrorismo: reflexões a partir da criminologia crítica. RBCCrim 75, p. 334). E se chega ao Brasil.

É preocupante a tramitação, atualmente na Câmara dos Deputados, do PLC 101/2015, de iniciativa do Poder Executivo (Ministérios da Justiça e Fazenda), que tipifica criminalmente o “terrorismo” e ações correlatas.

Como se vê do processo legislativo em curso com as modificações havidas no Senado, nota-se não só a porosidade da finalidade do ato (trocou-se a expressão “terror” por “pânico generalizado” – quando se sabe que uma turbação local pode gerar pânico, mas não terror), e se deliberou que atos e manifestações inerentes a movimentos sociais ou coletivos movidos por propósitos reivindicatórios sejam taxados de ‘terroristas’.

Admitiu-se ato de ‘extremismo político’ enquadrável na grave categoria (como se tal ‘extremismo’ pudesse ser ‘terrorista’ a depender de dar causa ao funcionamento ou não das instituições do Estado), e se imaginou política duríssima de penas (o crime de opinião de ‘apologia ao terrorismo’ ostenta o patamar de 3 anos de pena mínima e 8 de máxima; e os demais têm todos pena mínima de 10, 12, 16 ou até mesmo 24 anos de reclusão). Tudo, sem falar no “aparelhamento de indivíduos” – confissão autoritária que se imaginava esquecida nos porões da ditadura –, punível com 10 a 16 anos de reclusão.

Atecnia legislativa à parte, imagina-se que com tal alteração o Brasil cumpra compromisso assumido junto aos demais integrantes do GAFI (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo) e preste as contas que cogita dever. Mas aí reside outro problema, com o que se encerram essas reflexões: legislar para quem?

Se no cenário global já se atentou à dificuldade, ou impossibilidade, de enquadramento jurídico do que seja um ato ‘terrorista’ (autores, além dos citados aqui, como Ronald DworkinTerrorism and Human Rights – e Jeremy WaldronTerrorism and the uses of terror – atestaram-no com erudição), e se as justificativas que se imaginaram que tal não voltasse a ocorrer oscilam entre pífias, covardes e cruéis (qualquer uma inaceitável), internamente, não será com o advento da nova lei que o Brasil entrará para o clube dos ‘contra o terrorismo’.

Pelo pouco que aqui se falou é que se cobra mais lucidez. Externamente a solução pode estar em entender, debater e extirpar as causas políticas e sociais (invariavelmente decorrentes de ações dos países mais poderosos do mundo, como a invasão ao Iraque) que geram o caldo de cultura dentro do qual se desenvolvem pessoas que posteriormente vêm a praticar atos entendidos como de terrorismo; pode estar, também, no seguimento de regras de direito internacional de julgamento ao invés da insustentável lógica da caçada pura e simples (com o acionamento do Tribunal de Haia, por exemplo). Internamente, contudo, não será com mais lei penal e processual penal – particularmente com a proposta do PLC 101/15 – que o mundo ou o Brasil se tornarão mais pacíficos. Nem mais seguros.



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