INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 275 - Outubro/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

Vergonha

Sexta-feira, dia 28 de agosto de 2015. Mais uma palestra era ministrada no 21º Seminário Internacional de Ciências Criminais do IBCCRIM quando Carl Hart, professor associado do Departamento de Psicologia e Psiquiatria da Universidade de Columbia (EUA), constrangeu a enorme plateia que lá se encontrava.

Ao olhar para as centenas de pessoas que assistiam sua apresentação – sobre o combate às drogas e sua relação com o racismo e a exclusão social, entre outras questões –, o professor, que é negro, chamou a atenção para o racismo com o qual se deparava naquele momento - quase não havia outro negro no recinto em que se dava o maior encontro de ciências criminais da América Latina: “Olhem para o lado, vejam quantos negros estão aqui. Vocês deviam ter vergonha.”

Nos dias que se sucederam, a polêmica em torno do suposto fato de que ele teria sido barrado pelos seguranças do hotel em que ocorria o evento permitiu que ele chamasse a atenção para o racismo no Brasil, de forma geral. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, Hart, depois de aludir a eventos de racismo recentemente noticiados no Brasil, disparou: “Em um primeiro momento, fiquei perplexo com a atenção pública tremenda suscitada pela alegada discriminação racial cometida contra mim. Está claro, contudo, que a imprensa e o público se sentem muito mais à vontade priorizando atos individuais em que a vítima é uma figura pública, em vez da discriminação racial contínua contra cidadãos comuns e sem voz. A discriminação cometida contra pessoas sem voz parece não ser material próprio para se tornar viral, mas está claro que é uma condição crônica e esmagadora.” (Folha, 07.09.2015, O viral e o crônico, p. A2)

O vigoroso alerta de Hart deve nos levar a pensar no racismo não apenas como um elemento episódico ou patológico, mas como um componente “normalizador” da sociabilidade brasileira. O professor apontou para o fato de que vivemos em uma sociedade em que a lógica da vida cotidiana e o funcionamento das instituições públicas e privadas trabalham no sentido de reproduzir e naturalizar o privilégio branco e a subalternidade negra na organização da política, da economia e do sistema de justiça.

Nos últimos anos, pesquisas têm demonstrado o quanto a desigualdade no Brasil deve ser, necessariamente, acompanhada pelo adjetivo “racial”. Segundo dados do sistema de informação sobre mortalidade (SIM/Datasus) do Ministério da Saúde, mais da metade dos 56.337 mortos por homicídios em 2012 no Brasil eram jovens (27.471, equivalente a 52,63%), dos quais 77% negros (pretos e pardos) e 93,30% do sexo masculino.

Nesse mesmo sentido é necessário atentar para as considerações do pesquisador Júlio Jacobo Waiselfisz, no Mapa da Violência 2012, intitulado A cor dos homicídios: “Entre 2002 e 2010, segundo os registros do Sistema de Informações de Mortalidade, morreram assassinados no país 272.422 cidadãos negros, com uma média de 30.269 assassinatos ao ano. Só em 2010 foram 34.983. (…) Inquieta mais ainda a tendência crescente dessa mortalidade seletiva. E segundo os dados disponíveis, isso acontece paralelamente a fortes quedas nos assassinatos de brancos. Dessa forma, se os índices de homicídio do país nesse período estagnaram ou mudaram pouco, foi devido a essa associação inaceitável e crescente entre homicídios e cor da pele das vítimas: (…)

• Considerando o conjunto da população, entre 2002 e 2010 as taxas de homicídios brancos caíram de 20,6 para 15,5 homicídios – queda de 24,8% – enquanto a de negros cresceu de 34,1 para 36,0 – aumento de 5,6%.

• Com isso a vitimização negra na população total, que em 2002 era 65,4 – morriam assassinados, proporcionalmente, 65,4% mais negros que brancos, no ano de 2010 pulou para 132,3% – proporcionalmente, morrem vítimas de homicídio 132,3% mais negros que brancos.”

Em relação ao encarceramento, em 2012, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos acima de 18 anos havia 191 encarcerados, enquanto para cada grupo de 100 mil habitantes negros acima de 18 anos havia 292 encarcerados, ou seja, um número 1,5 vez maior.

Quanto às políticas sociais, que têm caráter universal, o racismo também se apresenta. Consoante o Relatório Anual das Desigualdades Raciais 2009-2010 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a avaliação de jovens de 15 a 17 anos mostra que 8 em cada 10 estudantes pretos e pardos estavam cursando séries abaixo de sua idade, ou tinham abandonado o colégio. Entre os brancos, 66% dos estudantes estavam na mesma situação. Na população de 11 a 14 anos, que segundo o estudo é a fase que jovens começam a abandonar a escola, 55,3% dos jovens brasileiros não estavam na série correta em 2008. Entre os jovens pretos e pardos, essa proporção chega a 62,3%, bem acima dos estudantes brancos (45,7%). Já a população branca com idade superior a 15 anos tinha, em 2008, 1,5 ano de estudo a mais do que a negra.

Estabelecimentos do SUS atenderam mais pretos e pardos (66,9% da sua população atendida em 2008) do que brancos (47,7%), a taxa de não cobertura também é maior entre o grupo de pretos e pardos, 27% para afrodescendentes e para 14% dos brancos.

A mesma desigualdade racial também estrutura o sistema de justiça. Censo do Conselho Nacional de Justiça divulgado em 2014 revelou que apenas 1,4% dos 16.812 juízes do Brasil são pretos. O censo mostrou também que a maioria dos magistrados é formada por homens (64%), brancos (84,5%), casados (80%) e heterossexuais.

Como se vê, o racismo não é apenas o resultado de uma ação ilegal do Estado, de certos grupos fascistas ou de indivíduos desequilibrados, mas é, principalmente, o produto da omissão de uma sociedade que não abre mão de funcionar sob a égide do privilégio racial branco.

Nos últimos anos, políticas de ação afirmativa de combate ao racismo foram implementadas pelo Estado Brasileiro, especialmente no que se refere ao acesso ao ensino superior, e que resultaram em sensíveis mudanças na composição do corpo discente das universidades brasileiras. Todavia, chama a atenção a incrível resistência de parte da sociedade a estas políticas, em especial à política de cotas, mesmo diante da insignificante presença de negros e negras nas universidades ou nos espaços de poder e decisão. Este fato é, talvez, a representação mais bem acabada do racismo estrutural. 

Portanto, sentir vergonha é um primeiro passo, mas ainda insuficiente. A história está cheia de demonstrações de arrependimento e culpa “post factum”. Muitos apoiadores da escravidão, do nazismo e das ditaduras já falaram sobre arrependimento e a vergonha que sentiram. A única forma de não compactuar com o racismo é agir sobre ele, é denunciá-lo, é desconstruí-lo (e desconstruir-se), é passar da vergonha para a ação política, é trocar a culpa pela responsabilidade.

O IBCCRIM tem um compromisso histórico com a democracia e com a defesa dos direitos humanos, e talvez seja a hora de aprender que não é possível falar nem de democracia e nem de direitos humanos quando não existe a firme e concreta disposição de combate ao racismo, um racismo que não está no outro, que torna natural a ausência de pessoas negras em nossos processos decisórios.

Por isso, a partir de agora, o IBCCRIM inicia um processo de revisão de seu funcionamento institucional. Não é possível mais que se discuta questões ligadas à criminologia e ao direito penal sem que o racismo seja permanente e constantemente considerado e sem que a população e a intelectualidade negras estejam presentes. O IBCCRIM a partir de agora dá início a um debate para a adoção de ações afirmativas de promoção da igualdade racial que visa a composição do seu quadro organizacional, a participação em eventos e a produção intelectual. Só assim será possível caminhar na direção do mundo que realmente queremos.



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