José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
O clima de paroxismo que sobrevoa a sociedade brasileira só escaparia a olhos ingênuos. Se o sentimento que une a nação neste momento é o medo, várias são as faces deste medo. Parte da sociedade parece se mover alimentada pelo medo instintivo, imemorial, de ameaças inatas à condição humana (à paz, à segurança, à vida, à família...), e aproveita para propor pautas como o aumento de penas, redução da maioridade penal (para os filhos dos outros, é claro), e restrição de direitos fundamentais.
A este medo em estado bruto, vetusto artífice de pautas conservadoras, agrega-se agora também o ódio, outro velho inimigo do Estado de Direito. É neste ponto de convergência cataclísmica de dois gigantes da alma, na já clássica acepção de Mira y Lopes, que se desvela outra face do medo, um medo de outra ordem, antítese daquele, um medo não tão atávico, fruto mais da nossa evolução civilizatória do que das nossas fraquezas biológicas, medo de ameaças a valores, digamos, mais modernos como a liberdade, a democracia, os direitos humanos, a tolerância, a dignidade da pessoa humana.
Este instituto, por seu histórico compromisso com valores democráticos e com uma política criminal de matiz racional, insere-se na categoria de cidadãos acometidos por essa outra face do medo.
Um breve retrospecto dos últimos acontecimentos não deixa esconder que não só o Legislativo, casa por natureza aberta aos anseios sociais de todas as posições ideológicas, mas também o Judiciário, de onde se espera os freios de contenção a discursos exaltados, vêm dando sinais de retrocesso na proteção de direitos e garantias fundamentais.
No plano legislativo, multiplicam-se propostas bastante representativas de como, em momentos de crise, o Direito Penal é usado na condição de analgésico para feridas que as políticas públicas não são capazes de tratar.
Mais pela simpatia que granjeiam entre o eleitorado descontente, do que em virtude de sua real efetividade, questões como redução da maioridade penal, aumento do catálogo de crimes hediondos (a carência conceitual da hediondez permite enquadrar, na categoria de crime hediondo, as mais díspares condutas típicas), a criação de tipos penais por categorias sociais (vide a criação de figuras qualificadas de homicídios de acordo com gênero ou profissão da vítima) estão sendo votadas a “toque de caixa”, como panaceia geral para todos os males.
No Judiciário também não faltam razões para se preocupar. Parece crescente a predileção por argumentos de contenção geral da criminalidade em detrimento do exame individualizado e racional do caso concreto.
Não são raras as prisões decretadas sob o pálio da “intranquilidade que acomete a população de bem”, os habeas corpus – quando conhecidos – negados sob a justificativa de que a “sociedade já não aguenta mais tanta violência”, condenações proferidas mercê de presunções, e vícios processuais sendo relativizados a fim de que o sistema possa mostrar sua eficiência.
Por outro prisma, a rara colocação na prisão de pessoas saídas dos estratos mais abastados da sociedade vem despertando um sentimento diferente daquele que a criminalidade violenta costuma incutir no espírito da população.
Ao passo que aquela desperta um natural sentimento de medo, a delinquência econômica provoca perturbadoras reações de ódio, aprofundadas no caso brasileiro pelas nossas históricas desigualdades sociais, e mais concretamente no momento atual pelo clima de instabilidade política que se alastra pelo país.
Parece claro que esta fagulha de ódio vem sendo aproveitada para aquecer em fogo alto caldo judicial de indisfarçável conteúdo autoritário, entre cujos ingredientes se encontram a constante legitimação da política de extermínio levada a efeito por nossas forças policiais, a banalização de prisões provisórias – já de nós muito conhecida para clientela preferencial do sistema penal, a população pobre e negra –, o fechar de olhos para a cada vez mais desumana situação do nosso sistema prisional, a relativização de direitos, como a comunicação reservada entre réu e defensor, o uso de prisões para propiciar confissões ou, por vezes, acordos de delação premiada, além de estratégias midiáticas que não se coadunam com a serenidade esperada de um processo penal.
Quando as receitas do medo e do ódio nutrem as atividades legislativas e judiciárias, e os meios de comunicação social, qualquer que seja o instrumento tecnológico empregado, aumentam o fluxo das mensagens da impunidade, da execração e da insegurança coletiva formando a opinião publicada, ninguém pode esperar proteção no exercício de direitos fundamentais, entre os quais se incluem, prima facie, a liberdade de locomoção e o devido processo legal. E se liberdade e processo se desajustam, não há mais lugar para um Estado Democrático de Direito, mas perigosamente são abertas, às escâncaras, as portas para um Estado policial e autoritário, no qual as garantias, que devem cercar o cidadão, passam a ser sistematicamente desprezadas.
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